quarta-feira, janeiro 18, 2017

- o carteiro -

este post começa de uma forma estranha, mas tem razão de ser.
Há duas práticas ancestrais que hoje continuam a ser levadas a cabo por nós, todos os dias e em todas as partes do mundo. Uma, a iconoclastia, é o fenómeno da destruição de imagens, fenómeno que ocorreu na formação do Cristianismo: os opositores à imagem com propósitos religiosos, destruíram-nas em muitas igrejas, principalmente na parte oriental do Império já que segundo o Antigo Testamento o crente não devia adorar outros deuses nem fazer imagens que os representassem. Por isso, quem era contra a reprodução da imagem divina, destruía-a como forma de expressar o seu descontentamento, não com o retratado, mas com a ideia. Hoje continuamos a fazer isso: quando algo acaba, rasgamos a fotografia dele/dela. Há até quem queime, mas isso soa-me a macumba. Rasgar a fotografia - ou queimá-la, para quem quiser ser mais radical - não elimina a pessoa da nossa cabeça e muito menos do coração, mas é um acto iconoclástico: ao fazermos isso estamos a dizer que eliminamos (ou que queremos eliminar) a pessoa da nossa vida. Neste caso manifestamo-nos contra a coisa retratada. E contra a ideia pois afinal, a ideia levou a uma ruptura.

A outra prática é o potlatch, típica de tribos nativas da América do Norte. (Penso até que os habitantes da Utopia de Thomas More a praticavam). Consiste em oferecer a uma pessoa uma série de bens de que ela no final da cerimónia se despoja, oferecendo-os a outras pessoas. No seu extremo, o potlatch pode levar à destruição dos bens. A pessoa que os destrói quer com este acto afirmar o seu estatuto social e a sua superioridade face a quem oferece e face aos bens em si.
E foi o que fiz... há uns meses comprei um souvenir.  Era uma caneca com a reprodução de um quadro de Van Gogh. Um pouco saturnino, mas acho que ninguém cria na alegria. E para além disso o Van Gogh é solar, mesmo quando é saturnino.


















Infelizmente nunca consegui entregar o presente e entretanto, o contexto mudou. Entregá-lo já não fazia sentido. Todos os dias passo pela caneca e todos os dias penso "o que é que te vou fazer?" Pensei em fazer como os iconoclastas de Bizâncio e partir a caneca. Mas não é isso que sinto. partir a caneca não iria mudar nada em mim; iria mudar na caneca. Por isso resolvi praticar potlatch em potência: arrumar a caneca num armário bem alto, lá atrás e esperar um dia descobri-la já sem este sentimento de perda no coração. será um reencontro sem saudade ou melancolia (espero!), com a cicatriz, mas sem a ferida.