segunda-feira, setembro 12, 2016

- o carteiro -

começa daqui a nada mais uma peregrinação a Fátima. fui lá duas vezes e não foi a pé, infelizmente. fui lá quando tinha por volta de 12 anos e lembro-me de ter ficado num hotel que se chamava "Verbo Divino". há noite as meninas resolveram fazer chamadas para o quarto dos meninos e os pais iam desmaiando quando no dia seguinte viram a conta. Mas era mesmo muito importante para as meninas dar a conhecer aos meninos, por telefone, quem gostava de quem. A segunda vez que fui lá foi há uns três anos quando fui ver as grutas de Mira d'Aire e as pegadas de dinossauros. No regresso passei por Fátima para ver a nova Basílica que me pareceu muito barulhenta para um culto que se quer sossegado. 

Se acredito? Não acredito no Deus construído com Constantino, no Deus de secretaria, no Deus das hierarquias. Desde pequena que tinha mais medo do que respeito ou crença. Achava que Deus me castigava quando eu me divertia. E castigava-me com um problema familiar que tive de carregar até aos 18 anos, em silêncio e sem ajuda. Nessa altura acreditei em Nietzsche: Deus estava morto e não me podia ouvir. Quero acreditar que a vida não é em vão, mas quando olho para algumas vidas que conheço, é muito difícil acreditar...

Bom, voltemos a Fátima. Quando as pessoas dizem "tenho muita fé em Nossa Senhora de Fátima" ou "acredito na Santa Rita", o que na realidade estão a dizer é que acreditam em Maria. Todas as santas são uma imagem, ou a renovação da imagem de Maria. É como se a Igreja criasse representantes de Maria e de Jesus (no caso dos santos), mais próximos das pessoas, representantes que conhecem as dores, desejos, idiossincrasias dos crentes. Por isso é que temos a Senhora do Mar junto das comunidades piscatórias, por exemplo. Mas todas as Nossas Senhoras e Santas são uma imagem de Maria. Ir a Fátima a pé é a alternativa possível a ir a Jerusalém a pé para visitar a Abadia da Dormição de Maria.

Há várias formas de representar Maria. Nesse sentido, os ortodoxos são muito mais marianos do que os católicos apostólicos romanos, pois possuem regras de representação muito estritas..., mas vamos lá ver se nos orientamos. 

Imaculada Conceição
Uma das formas de representar Maria é a chamada Imaculada Conceição (ou Imaculada Concepção que se refere na verdade não a concepção imaculada de Jesus, sem pecado original, mas à concepção imaculada, também sem pecado original, de Maria. Atenção que a concepção de Maria sem pecado original não a é no mesmo sentido que atribuímos à concepção de Jesus. Quando Maria foi concebida no seio de Santa Ana, Deus concedeu-lhe a graça de aceitar o que o Anjo mais tarde lhe iria dizer). O dogma da Imaculada Conceição é uma daquelas coisas feitas... na secretaria, já no século XIX. Por decreto papal, a Virgem foi concebida sem pecado! Representar isto era difícil. Embora a Imaculada Conceição só tivesse sido reconhecida no século XIX, já antes se tentava uma representação para tal. A fórmula encontrada foi representar a Imaculada Conceição de pé, coroada por um halo de 12 estrelas, sobre um globo terrestre e a lua, bem como esmagando a serpente. Esta fórmula é uma mistura entre o Livro do Apocalipse: "Depois, apareceu no céu um grande sinal: uma Mulher vestida de Sol, com a Lua debaixo dos pés e com uma coroa de doze estrelas na cabeça. Estava grávida e gritava com as dores de parto e o tormento de dar à luz. Apareceu ainda outro sinal no céu: era um grande dragão de fogo com sete cabeças e dez chifres. Sobre as cabeças tinha sete coroas e, com a sua cauda, varreu a terça parte das estrelas do céu e lançou-as à terra. Depois colocou-se diante da Mulher que estava para dar à luz, a fim de lhe devorar o filho quando ele nascesse. Ela deu à luz um filho varão. Ele é que há-de governar todas as nações com ceptro de ferro. Mas o filho foi-lhe arrebatado para junto de Deus e do seu trono." e as determinações de Murillo e da Inquisição quanto às representações religiosas na arte. As doze estrelas podem ser muita coisa (o que não falta são números místicos): doze tribos de Israel, ou os doze apóstolos. A serpente é a luta do bem contra o mal - venceu o bem - e a Lua... bom, acho que a Lua tem a ver com Vénus. Quer dizer, Vénus e Maria não são comparáveis à primeira vista: uma é a deusa do amor carnal. a outra é espírito. Uma é mãe, a outra é amante. Uma anda nua, a outra vestida. Mas Vénus tem como símbolo um pequeno crescente na cabeça. Talvez porque a Lua, como a Terra, é feminina e ambas representam essas duas dimensões femininas. Uma das representações mais bonitas da Imaculada Conceição é a de Velazquez. Não é que seja a mais representativa disto que escrevo, mas o rosto da Virgem é lindo. Ora vejam lá.





















Tiepolo
Immaculate Conception
1767-1768
Museo del Prado, Madrid

 Virgem com o Menino
Ora bem, a Virgem com o Menino "são mais 500", como se costuma dizer pois a simples representação da Virgem com o Menino tem, para os ortodoxos, várias sub-representações. Já falei delas aqui, mas vou voltar a falar. Note-se que estas representações aquiropoetas são típicas da iconografia bizantina e não das representações ocidentais. Mesmo a divisão em termos de denominação é tipicamente bizantina. Uma vez que não são muito faladas - e que tenho um fascínio pelo ritual bizantino - achei por bem falar nelas. São muitas, por isso vou falar de apenas algumas. As representações de Maria (Theotokos ou mãe de Deus, por oposição ao que pretendia o Arianismo (o arianismo defendia que a Virgem não era Theotokos, mas Christotokos, "mãe de Cristo") com o Menino podem dividir-se em várias. 
Maestas é o nome que a Virgem adquire quando está entronizada com o Menino, como por exemplo, aqui. É uma representação genérica:





















Cimabue
Maestà di Santa Trinità
1280-1285
Uffizi Gallery, Florença

Panagia
Maria de pé, com os braços levantados, na posição de orante (típica da arte paleocristã) e com um medalhão no peito, onde aparece o rosto de Cristo menino.





















Panagia
século XIII

Nikopoia
Sentada em Maestàs, com Jesus no colo, de frente:

















Nikopoia
Hagia Sophia, Istambul 

Hodegetria
Maria com Jesus ao colo (não nos joelhos, mas ao colo), e ela apontar para ele como que mostrando que ele é o caminho:

















Duccio
The Madonna and Child
1284 

Eleousa
É aquela que conhecemos melhor pois teve muita aceitação no ocidente. Mostra Maria com o menino no colo, numa demonstração de carinho entre mãe e filho (geralmente têm o rosto colado um ao outro):

















The Cambrai Madonna
Italo-Byzantine
1340
Cambrai Cathedral

 Virgem do Leite
Ora bem, como está bom de ver, a Virgem do Leite é a Virgem a dar de mamar ao menino. Estas representações não tinham, na maior parte das vezes, nada a ver com erotismo. No século XIV as imagens da Virgem a amamentar o menino eram um sinal de esperança, já que as pestes e a fome eram a realidade dos povos. Ver uma Virgem Maria a amamentar o Menino era crer num futuro melhor. Nos séculos XV e XVI, com a recuperação das teorias de Galeno - que dizia que o leite materno era necessário para a formação física da criança (a formação psicológica ficava a cargo dos genes do pai), as jovens mães e aspirantes a mães (que eram todas pois se não se era mãe, era-se freira ou prostituta) viam estas imagens como uma forma de inspiração. Mas atenção, pedia-se decoro aos artistas: apenas um seio descoberto. E esse seio era geralmente tão abstracto (a ideia e arquétipo de beleza feminina de que o seio seria redondo como uma maçã e com um mamilo muito pequeno e rosado, estaria e está longe da realidade) que não podia inspirar qualquer voluptuosidade. Veja-se aqui:

















Rogier van der Weyden
Virgin of the Milk

 Virgem da Misericórdia
A Virgem da Misericórdia é aquela que sob o seu manto, todos acolhe, sejam eles crianças ou adultos, pobres ou ricos, anónimos ou conhecidos. Muitas vezes as Virgens da Misericórdia eram encomendadas pelas confrarias ou por mecenas e por isso a Virgem "via-se na obrigação" de acolher no seu manto os confrades e os mecenas "mai-las" suas famílias.
 


















Domenico Ghirlandaio
Madonna della Misericordia
1473
Florença

Virgem do Rosário
 Bem, a Virgem do Rosário é difícil de encontrar até porque inicialmente não tinha esse nome. Só no século XVI é que adquiriu o nome de Virgem do Rosário pois antes era qualquer coisa como "Nossa Senhora da Vitória". Como podem ver pela imagem abaixo Nossa Senhora está rodeada por 15 círculos, cada um com um desenho diferente. Estes 15 círculos chamam-se mistérios. O terço que habitualmente as pessoas rezam é um terço destes 15 mistérios; ou seja, cinco mistérios. Cada mistério é composto por 10 avé-marias e um pai-nosso. Sendo assim, estamos perante 50 avé-marias num terço e 150 num rosário. Os mistérios têm constituição: são gozosos, dolorosos, gloriosos e o Papa João Paulo II adicionou-lhe os mistérios luminosos. Os mistérios gozosos referem-se aos primeiros tempos da vida da Virgem, enquanto mãe (Anunciação, Visitação, Natividade, Apresentação do Menino no Templo e Jesus entre os doutores). Os mistérios dolorosos referem-se ao período relativo à morte de Cristo (Oração de Jesus no Horto das Oliveiras, Flagelação, Coroação, Calvário e Crucifixão (pode dizer-se crucifixão e crucificação)). Os mistérios gloriosos dizem respeito à ressurreição de Jesus ( Ressurreição, Ascenção de Jesus, Descida do Espírito Santo, Assunção de Maria (porque Maria não ascende como Jesus, é assumida nos céus), e a Coroação (construção moderna para calar aqueles que queriam dar a Maria outro papel. por isso criou-se a "Rainha dos Céus")). Os mistérios luminosos não encaixam bem aqui, mas se o Papa mandou, quem sou eu... São mais... místicos e não têm a ver com passagens concretas da vida de Maria ou de Jesus, excepto o baptismo deste último.





















Lorenzo Lotto
Madonna do Rosário
1539
Virgem do Ó
Ao contrário do que pensam, a Virgem não se chama do Ó porque está grávida, redonda como um Ó. Chama-se Virgem do Ó porque era celebrada no dia 18 de Dezembro. Ora entre 18 e 25 de Dezembro cantavam-se antífonas que começavam por Ó: "Ó Mãe do Redentor", "Ó clemente", "Ó beatíssima"...
 E assim acontece. Rezem por mim.