segunda-feira, abril 25, 2016

 - o carteiro -

 e o Homem criou Deus... (XVII)

Após a Inquisição a Igreja de Roma deparou-se com outro problema de difícil resolução, ou, pelo menos, de resolução pouco pacífica. Não estamos a falar de caça às bruxas nem de procurar o diabo no corpo dos crentes como medida dissuasora da liberdade de pensamento. Estamos aliás longe disso.

Em meados do século XV, Gutenberg cria um método de impressão que liberaliza a produção de livros. Até aí eles eram manuscritos, copiados por monges. Eram eles quem tinha o acesso ao conhecimento, eram eles que "escondiam" os livros. Estou a lembrar-me do "Nome da Rosa". Ao inventar os caracteres móveis, Gutenberg tornou o livro mais acessível para todos aqueles que sabiam e queriam ler e que convenhamos, eram em escasso número. Entre os livros que Gutenberg imprimiu está a Bíblia, que se torna assim acessível às pessoas comuns. Cerca de 75 anos depois em Inglaterra era traduzido, em homenagem a um homem chamado William Tendell, o Novo Testamento para linguagem actual e compreensível. Isto claro não era visto como algo de positivo em todos os quadrantes da sociedade. Até agora a Bíblia apenas existia em latim e por isso no domínio da clero educado e culto. Traduzir a Bíblia é visto como uma heresia e uma ameaça directa à Igreja. Por causa disto, Tendell é queimado vivo! No entanto, uma vez a revolução iniciada já nada a podia parar e as traduções da Bíblia vieram mesmo colocar um ponto final à autocracia do conhecimento praticada pela Igreja.

Na Alemanha Martinho Lutero também traduz a Bíblia, mas não é por isso que o seu nome fica conhecido. Em 31 de Outubro de 1517 Martinho Lutero aproxima-se da porta da Igreja do castelo de Wittenberg e afixa aí as suas 95 teses. Lutero estava furioso com a questão das indulgências, já que o Papa havia concedido indulgências (perdões daqueles valentes) a quem tivesse contribuído para as obras da Basílica de São Pedro. Ora, isto é colocar um preço à salvação e já se sabe quem é que pode pagar: os ricos. Ao colocar as suas 95 teses na porta, Lutero dá início a uma revolução teológica que a par da revolução tecnológica de Gutenberg, divide a cristandade. As 95 teses de Lutero são tão fortes, tão revolucionárias que ele chega mesmo a chamar o Papa de Anti-Cristo. Em resposta às críticas de Lutero, o Papa Leão X publica um édito a condenar dezenas de trabalhos de Lutero e dá-lhe seis dias para se retratar. Lutero responde-lhe ainda com mais acidez e veementes acusações e claro, sem surpresa, é excomungado. Mas segundo a lei germânica, ele tinha direito a um julgamento que de facto aconteceu na cidade de Worms (julgamento conhecido por Dieta de Worms) e foi presidido por Carlos V. Carlos V era de origem espanhola e havia sido declarado há pouco Sacro-Imperador Romano. Os apoiantes de Lutero acorreram em grande número. Tão grande que a ameaça que representavam era não só à Igreja como à sociedade civil. Obviamente Lutero mantém a sua palavra durante o julgamento e é considerado por isso pela Igreja um fora-da-lei. Os apoiantes de Lutero, com medo que o matassem, organizam um rapto, levando Lutero para o Castelo de Wartburg onde permanece um ano.

A principal reclamação de Lutero face à Igreja de Roma é que ele insiste que a Salvação só pode vir da Fé em Cristo e das Escrituras e não das boas acções. Isso torna muito subjectiva a relação do crente com Deus: as boas acções podem ser vistas, avaliadas, enquanto a Fé não. Esta relação privilegiada e mais próxima entre o crente e Deus é, para mim, um dos pontos de viragem na sociedade ocidental. Numa época em que as pessoas viviam mal, a esperança de vida era curta e os pobres ostracizados, a Salvação através das Escrituras marca a ascensão de uma das mais poderosas ideias da civilização ocidental: a ideia do indivíduo.