segunda-feira, abril 04, 2016

- o carteiro -

e o Homem criou Deus... (XIV)
 
olá a todos, como estão. Vamos continuar? Tínhamos ficado nas cruzadas e no insucesso das duas primeiras cruzadas que se pautaram pelos saques e chacinas. Mas o episódio mais notório das cruzadas deve ter sido o saque de Constantinopla. Nesta altura, Constantinopla era a sede da Igreja Ortodoxa. Entre Ocidente e Oriente as relações eram, como se sabe, turbulentas. No ano de 1202 Jerusalém estava perdida para os cristãos, pertencendo então aos muçulmanos. O papa Inocente III convoca mais uma cruzada para tomar a cidade. Mas como está bom de ver, após cerca de 100 anos de cruzadas, a Europa está cansada.
Convém introduzir aqui uma personagem não muito conhecida. O seu nome é Enrico Dandolo, de 95 anos. Enrico era o doge de Veneza, era um mercador quase cego e que estabelecia muitas trocas comerciais com os muçulmanos. Dandolo assinalado pelo rectângulo verde:













Paolo Veneziano
Doge Francesco Dandolo and his Wife Presented to the Madonna
1339
Santa Maria Gloriosa dei Frari, Venice


Interessava-lhe por isso manter relações cordiais com estes, em vez de lutar contra eles. Um dos seus pontos de interesse para o comércio era justamente a cidade de Constantinopla onde Enrico havia perdido o tal olho, una anos antes. Dandolo, dando cumprimento à convocatória papal, aceita transportar alguns homens para mais uma cruzada a troco de uma larga soma de dinheiro. (A Europa embora cansada das cruzadas, acorreu ao chamamento papal.). Enrico tem porém uma "carta na manga": Ele sabe que cerca de metade dos cruzados não tem dinheiro para esta empreitada. É então que o doge propõe levá-los - apesar deles não terem dinheiro - se estes saquearem Zara, uma cidade do Mar Adriático, antiga possessão veneziana, cidade cristã. Se estes cruzados conquistassem Zara, várias coisas aconteciam: Veneza recuperava uma antiga possessão - e o doge, enquanto representante de Veneza, ficava bem visto; o doge amealhava para si os despojos de guerra; o doge, enquanto mercador, conseguia um território até aí concorrente com Veneza, o que quer dizer que conseguia mais negócios... Para além disso, Enrico Dandolo colocava cristãos contra cristãos. Zara, ainda que não na mão dos cristãos, era uma cidade cristã. Pois isso ofende alguns cruzados. Outros, convencidos que os fins justificam os meios, tomam a cidade, restauram o papel do imperador bizantino que havia sido destituído e exigem em troca - e em nome da causa que defendem - mais 10.000 cavaleiros e a promessa que a Igreja Oriental se iria subjugar à Igreja Ocidental.



















Tintoretto
Conquest of Zara
1584
Palazzo Ducale, Veneza


Mas quando os cruzados devolveram o imperador ao trono, descobriram que este não podia dar-lhes nem os cavaleiros, nem a submissão da Igreja. Para Enrico era indiferente haver ou não submissão... O doge aproveita a oportunidade e a presença dos cruzados na cidade para esmagar os seus rivais em Constantinopla. Durante 3 dias os cruzados sitiaram e pela primeira vez na História, Constantinopla é tomada. Os cruzados mataram, destruíram, violaram e, claro, roubaram, principalmente tesouros e relíquias que, por vezes retirados das Igrejas pelo próprio clero. O saque de Constantinopla choca a cristandade e o Papa Inocente III, que convocou a cruzada, reage com fúria, excomungando os participantes na mesma. No entanto, o Papa não resiste à tentação de ter uma Igreja unificada sob a sua autoridade suprema. Constantinopla permanece ocupada por 60 anos e o Oriente não recupera o poder e glória que um dia teve. Entretanto, e a Ocidente, a Cristandade vai expandindo-se, ainda que sempre numa luta entre luzes e treva, entre razão e misticismo.

6 Comments:

Anonymous pedro b. said...

Tema interessante, sem dúvida, e também não conhecia a pintura de Paolo Veneziano. Existe uma gralha no texto. Onde diz: “o saque de Roma choca a cristandade e o Papa Inocente III, que convocou a cruzada, reage com fúria, excomungando os participantes”, deveria ser o saque de Constantinopla, claro.

Também me parece que se dá demasiado protagonismo aos venezianos – embora politicamente maquiavélicos e interessados em expandir o seu domínio no Mediterrâneo oriental, a verdade é que um dos responsáveis pelo desastre foi Alexios Angelos, príncipe bizantino que almejava o poder. (Acho eu, mas é um assunto muito controverso e eu confesso-me completamente ignorante nesta área).

Segundo esta versão dos acontecimentos, em 1203 uma facção (maioritária) dos cruzados estabelece um acordo com o princípe bizantino, comprometendo-se a fazer um desvio por Constantinopla e restaurar o seu pai no trono (pequenos contingentes de cruzados continuaram a viagem até Acre, actual Estado de Israel). Alexios IV Angelos é então coroado Imperador (ou co-Imperador junto com o pai, que faleceu pouco depois) com a ajuda dos cruzados. No entanto, em Janeiro de 1204, um levantamento popular leva à sua destituição. Os cruzados viam-se assim incapazes de receber os pagamentos prometidos. Em Fevereiro, Alexios IV é assassinado por um dos seus cortesãos (que se autoproclama imperador) e os cruzados e venezianos perdem a paciência e decidem conquistar definitivamente Constantinopla. A cidade é brutalmente saqueada.

Os massacres de recém-nascidos, as violações, tortura de monges, a profanação de altares vão ficar na memória colectiva de gregos e eslavos (cristãos ortodoxos), e o relato da ferocidade destes “cruzados”, compostos maioritariamente por venezianos, genoveses e catalães (?), propagou-se até à Rússia. Henri Tincq (Os Génios do Cristianismo, Lx.: Gradiva, 1999, p.56) diz que para os gregos a palavra ‘catalão’ ficou sinónimo de “bicho-papão”. Aliás não é para admirar. O mesmo autor refere que, aquando da I Cruzada, os francos se entretinham a devorar carne humana, reunidos à noite em volta da fogueira. Segundo um cronista da época: “os nossos coziam os pagãos adultos em caldeirões, empalavam depois as crianças em espetos e devoravam-nas grelhadas” (cit. por Tincq, p.65).

[Obs.: a wikipédia refere que a maioria dos cruzados era oriunda de França: Blois, Champagne, Amiens, Saint-Pol (na Bretanha), Ilha-de-França, e Borgonha. Havia ainda gente da Flandres, Piemonte e Alemanha. Em lado nenhum se fala de catalães…]

5/4/16 2:20 da tarde  
Anonymous pedro b. said...

Os cruzados estabeleceram um instável “Império Latino”, em torno de Constantinopla, dividindo alguns outros territórios bizantinos entre si. Contudo, sobravam ainda diversas partes do império por conquistar: Grécia continental, Mar Negro, etc. Aí se organizou a resistência, se bem que estas regiões estivessem divididas em estados bizantinos independentes que também lutavam entre si pelo acesso ao trono de Bizâncio-Constantinopla. Uma delas (Niceia) acabou por recuperar Constantinopla em 1261, c. 60 anos após a fatídica cruzada.

Historicamente, a IV Cruzada é considerada como o acto final no ‘Grande Cisma’ entre a Igreja Ortodoxa e a Igreja Católica Romana, e um ponto de viragem no inexorável declínio do Império Bizantino. Após 1261 houve uma recuperação parcial, mas o império continuou muito enfraquecido, sofrendo sucessivos ataques por parte de “latinos”, sérvios, búlgaros e, mais importante, turcos otomanos. Entre 1346 -1349 a peste negra dizimou quase metade dos habitantes de Constantinopla. Em 1453 Constantinopla encontrava-se despovoada em resultado do declínio económico e territorial. O império era agora constituído por algumas milhas quadradas fora da cidade, e pelo Peloponeso (Grécia continental). O Império de Trebizonda, um estado sucessor independente, sobrevivia também na costa do Mar Negro (em 1461 seria finalmente conquistado pelos turcos embora aí continuassem populações gregas a viver, pelo menos até 1914-22, período em que ocorreu o genocídio de Gregos, Arménios e cristãos Assírios pelos nacionalistas).

No ano de 1453 deu-se a conquista turca de Constantinopla, numa batalha que durou 53 dias. Ironicamente, desta vez os bizantinos eram apoiados pelos mesmos cristãos do ocidente que dois séculos antes os tinham destruído. Havia 5 navios de Génova, 8 de Veneza (alguns territórios gregos, como Creta e Eubeia, eram agora venezianos e algumas ilhas junto à costa turca, como Lesbos e Quios, eram genovesas), 1 navio de aragoneses do Reino da Sicília, 1 dos Estados papais, etc. Levaram todos porrada da grossa.

bjs,

5/4/16 2:22 da tarde  
Blogger Belogue said...

Olá professor, bom dia
Posso responder no fim de semana? Preciso de reunir as minhas fontes.
Beijos, b.

6/4/16 8:45 da manhã  
Blogger Belogue said...

Olá professor, boa noite.
Confesso que nas minhas fontes tive difuculdade em encontrar a outra parte da história; ou seja a parte relativa a Aleixo III ( depois IV, juntamente com o pai). Procurei nos livros "as grandes datas do cristianismo" e "história do cristianismo" e o assunto é ignorado. Talvez os autores considerassem esse um assunto da História e não da Igreja. Sim, de facto o papel de Aleixo fica na sombra, mas ele já andava a preparar o que se passou, devido aos actos constante traição à família e associação aos inimigos.
O pai de Aleixo, Isaac, imperador bizantino tinha sido preso por depauperar o império. Aleixo que queria obter para si o trono que tinha pertencido ao pai, foge da prisão e junta-se a Filipe da Suábia e a Bonifácio de Montferrat. Filipe queria tornar o Oriente dependente do Ocidente, Aleixo queria o trono e Bonifácio tinha os meios (embarcações e soldados que auxiliariam os cruzados "nobres". A conquista tinha de ser feita por barco pois as estradas estavam intransitáveis). Depois da bronca em Zara - em que o Papa ficou furioso e não perdoou a Dandolo - Aleixo resolve apresentar os seus préstimos: garante aos cruzados o pagamento da dívida que estes tinham ante os venezianos (uma vez que tinham sido os venezianos a providenciar tudo em troca de alguns bens dos saques e em troca da reconquista de Zara), garante apoiar o que falta para concluir a cruzada, com alimentos e mais soldados e garante a submissão da Igreja a Oriente, se, em troca, o colocarem no poder.
Dandolo, todo contente, parte para Constantinopla. A carta para os cruzados também era para os venezianos: desde que o dinheiro chegasse a eles, não interessava por onde passava antes. Aleixo não diz nada às suas tropas e estas, apesar de muito debilitadas, tentam defender a cidade quando os venezianos chegam. Quando Aleixo percebe que as tropas estão a defender Constantinopla e que logo vão perceber que ele traiu a cidade e o povo, foge com a filha preferida e um saco com pedras preciosas. Os funcionários do Estado, quando dão pela fuga de Aleixo, vão buscar Isaac à cadeia e colocam-no no trono: havendo imperador, toda a questão ficava sem efeito. Os venezianos, para assegurarem os seus interesses, mandam chamar Aleixo e exigem um trono bipartido.
O resto, o professor já contou.

No livro "o tempo das catedrais" (acho que é nesse), há também descrições impressionantes da vida na Idade Média, principalmente durante ataques e conquistas. Para além de pessoas, tudo que era cão e gato desaparecia.

Bem, vou embora. Obrigada por esta troca de ideias.
Beijo, b.

9/4/16 11:25 da tarde  
Anonymous pedro b. said...

Sim, no "Tempo da catedrais", do Georges Duby diz-se que durante as fomes da Idade Média (antes do ressurgimento das cidades e do começo do gótico - ou aliás românico, acho eu) os camponeses desenterravam os mortos e comiam-nos. Mas não o faziam por maldade, como os cruzados. (Não se tem a certeza se os cruzados eram canibais por necessidade ou por fanatismo, talvez fosse um misto dos dois).
Bem, acho que está na hora de, também eu, ir jantar. A minha mulher acabou de perguntar lá de baixo: "Pedro, queres comer alguma coisa?"

10/4/16 8:58 da tarde  
Blogger Belogue said...

Vá lá jantar! Esta conversa abre o apetite, não é?

12/4/16 9:01 da manhã  

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