segunda-feira, abril 04, 2016

- o carteiro -

de bestial a besta
 
olá outra vez. não, não estou a chamar-vos bestas. credo, não! mas que as hay, hay! e de facto, este blog passou de bestial a besta. e eu também. desculpem lá a maçada...
 
dando continuidade ao mesmo pequeno estudo sobre bestiários, apresento-vos aqui outras bestas curiosas. Convém dizer neste ponto uma coisinha (até vou fazer parágrafo, só por causa das coisas. "que coisas", perguntam vocês. "não sei", respondo eu)
bestiários houve muitos, mas o que se observou foi que eles tinham quase sempre a mesma estrutura; ou seja: em primeiro lugar estavam as bestas (bestas era o nome dado aos animais selvagens ou domésticos, mamíferos, segundo me parece) e dentro desta categoria, o grande destaque ía para o leão. O leão é um símbolo de coragem e por isso é um símbolo de Cristo. Seguiam-se outras feras do mesmo tipo como o tigre e o leopardo e todas as outras reais ou imaginárias, como a lebre (que só aparece nos bestiários a partir do século XIV) ou o unicórnio. O unicórnio é um caso daqueles... a bíblia, segundo algumas traduções fala do unicórnio (ou do animal com um chifre), mas não há qualquer vestígio de que alguma vez tenham existido unicórnios. O unicórnio da Bíblia era provavelmente uma criatura menos estranha do que se imagina. Talvez fosse um animal com dois chifres, mas visto de lado, como de lado eram muitas das representações artísticas de animais, como os Lamassu (vimos imagens destas criaturas fantásticas quando o ISIS destruiu Palmira). As escrituras originais mencionam o termo re'ém nove vezes. Re'ém, em hebraico, era a palavra para dizer qualquer coisa como um auroque, animal que já não existe. Só que outras versões da bíblia traduziram re'ém por monokeros (um único chifre). Daí passou-se para unicórnio e rinoceronte. A bíblia dos Capuchinhos que é, na minha opinião, a melhor tradução para português actual, que por aí anda, não usa, em nenhuma daquelas nove ocasiões que referem, em outras versões, o unicórnio (Job 19:9-12; Isaías 34:7; Salmos 19:6; Salmos 22:21; Salmos 92:10; Números 23:22; Números 24:8 e Deuteronómio 33:17), o termo. Depois dos mamíferos, tínhamos as aves, sendo que a águia era o animal mais icónico deste grupo, posteriormente os répteis, cujo grande representante era o dragão e os peixes, com a baleia à cabeça. É de salientar que nem todos estes animais eram símbolos do bem; alguns representavam o diabo, como o macaco (parecidos com os humanos, enganadores), a raposa (matreira), o lobo, o asno, a perdiz, o dragão e a baleia... Ou seja, o facto de encabeçarem alguns grupos não faz destes animais símbolos do bem.
Alguns animais fazem parte dos bestiários de forma secundária; ou seja, começaram a ser desenhados nas margens dos manuscritos por monges copistas após, provavelmente, longas horas de leitura e visualização de bestiários. Um exemplo é a loba morde a própria pata.

A grande excepção a todos os animais é o leão, príncipe de todos os animais, rei da selva! O leão, como se sabe, é conhecido pela sua coragem. Dizia-se que os leões, não obstante serem animais corajosos, temiam o som das rodas a ranger, os incêndios, o fogo, mas também os galos brancos. Os cientistas - da Idade Média - diziam que os leões tinham três características principais: gostavam de explorar e vaguear pelas altas montanhas (desta forma o odor dos caçadores chegava mais rapidamente até eles e o desta forma eles podiam apagar o rasto das suas pegadas (patadas) com a cauda; quando dormem, os leões mantêm os olhos abertos e quando uma leoa dá à luz as suas 3 crias, todas elas estão mortas e permanecem mortas por três dias, até o pai, chegado no terceiro dia, respira para as suas faces e dando-lhes espírito e vida. Da mesma forma, Deus insuflou com vida Jesus Cristo morto, após três dias. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Anónimo
Bestiary
cerca de 1190
Bodleian Library, Oxford
 
Os leões pequenos com juba encaracolada eram pacíficos, os maiores e com juba lisa eram mais ferozes... As relações entre leões e homens era também muito fantasiada: achava-se que os leões aceitavam e poupavam os proscritos; permitiam aos homens de outros reinos voltar para casa sem serem capturados, caçavam mais os homens que as mulheres e nunca comiam uma criança, a menos que tivessem fome. Os leões também nunca comiam demais: comiam e bebiam dia-sim dia-não e caso, algum leão mais guloso comesse demasiado, este leão levaria as patinhas à boca e extrairia a carninha. Ah... e eram esquisitos: não comiam sobras do dia anterior! Muitos animais ficavam paralizados pelo rugido do leão. Quando doentes, os leões procuravam comer macacos. é assim!

 
O tigre recebe o nome da velocidade que atinge. Sabe-se que os gregos e os persas denominavam as suas setas de tygris. O que de mais notável se contava, nos bestiários - e penso que fora deles também - era que a tigresa (e não "tigressa", isso é em brasileiro) quando descobria que uma das suas crias tinha sido roubada, imediatamente se punha em busca do ladrão. Mas este, vendo que mesmo a fugir num cavalo podia ser alcançado pela trigresa, inventava uma manha... Ele atirava uma esfera de vidro (sim, porque os ladrões andam com esferas de vidro) e a tigresa, enganada pelo seu próprio reflexo na bola, assumia que a imagem no esfera era a imagem da sua cria. Ficava portanto para trás até descobrir o engano, altura em que continuava a perseguição ao ladrão. Este, vendo que a mãe, não obstante o atraso, estava a alcançá-lo, atira uma segunda esfera de vidro à tigresa que mais uma vez, e não guardando memória do engano anterior (porque as mães são assim...), fica novamente para trás tentando amamentar a cria. É caso para dizer que perde pau e bola; ou seja, nem fica com a cria nem se vinga do ladrão.


 









British Library, Londres

Quando o leopardo come e se sente satisfeito, afasta-se para a sua cova e dorme. Após três dias acorda e emite um arroto muito ruidoso que exala um cheiro doce. Quando os outros animais ouvem o seu arroto e sentem o cheiro doce que sai doce que sai da sua boca, seguem-no. Apenas o dragão não o faz por ser seu inimigo, fugindo, com medo, para a sua caverna. Aí, incapaz de suportar o doce aroma da boca do leopardo, o dragão torna-se letárgico e permanece imóbil até que morre. A verdadeira pantera que é Nosso Senhor que nos arrebatou do poder do demónio (dragão) ao descer dos céus. Os leopardos apenas têm crias uma vez pois quando estas tentam sair do útero da mãe, fazem-no golpeando-o com as patas o que o danifica. As outras ninhadas subsequentes não conseguem por isso vingar.
  














 British Library, Londres

O antílope é um animal privilegiado, já que nenhum caçador consegue sequer aproximar-se dele. Tem longos chifres em forma de serra, de tal forma que até pode cortar grandes árvores! Quando tem sede, o antílope segue até ao rio Eufrates e bebe dessa água. Ora, existe nessa zona, na zona do Eufrates, um arbusto chamado Herecine que tem longos galhos e com os quais o antílope brinca, fazendo passar os seus chifres por aqueles galhos. Ao fazê-lo, galhos e chifres ficam entrelaçados e o antílope não consegue libertar-se. Vendo-se preso emite um bramido que alerta os caçadores que assim conseguem capturá-lo e matá-lo.
 
 
O unicórnio era, segundo os bestiários medievais, um animal muito pequeno, do tamanho de uma criança, extremamente rápido e com um único chifre na testa. Nenhum caçador conseguia apanhá-lo, a não ser pelo seguinte estratagema:
Guiava-se uma virgem, sozinha, para perto do local onde o unicórnio vivia, no meio dos bosques. O unicórnio, vendo a virgem, rapidamente saltava para o seu colo e aninhava-se nele, sendo por isso facilmente apanhado. Jesus era de certa forma um unicórnio, desta feita, um unicórnio espiritual. Tal como o unicórnio tem um único chifre, também Cristo e o Pai são um só. É também uma espécie de unicórnio espiritual pois nada nem ninguém conseguia detê-lo: nem os Tronos, nem as Dominações (com letra maiúscula pois trata-se de anjos), nem o Inferno podiam apanhá-lo ou prendê-lo. Apenas a vontade do Pai o fez vir à Terra através de uma virgem, para nossa salvação.
Apesar de tudo isto, o unicórnio podia lutar com outros animais, principalmente com elefantes, que vencia ferindo-os no dorso. 
















Domenichino
The Maiden and the Unicorn
c. 1602
Palazzo Farnese, Roma

 
(continua)