domingo, março 27, 2016

- o carteiro -

 


















Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a Vase
1888
National Gallery, Londres 

viajo de comboio todos os dias, desde os meus oito anos. ainda me lembro da primeira vez que viajei sozinha. fui para a estação com a minha mãe, mas como ela tinha passe, entrou na composição e ficou à minha espera (à espera que eu tirasse bilhete), entre as portas do comboio. o maquinista porém, sem contemplações e lá do seu cubículo, carregou no botão para as portas fecharem. a minha mãe afogueada e aflita ainda acenou com o braço, mas as portas bufaram e fecharam-se. eu fiquei na gare, com o bilhete na mão e o coração a bater rápido, mas calma. o que é que podia correr mal? eu tinha oito anos, nenhum ou quase nenhum dinheiro comigo, era ajuízada e já tinha feito aquilo quinhentas vezes. o segredo era fazer um ar blasé, quase distraído e tudo ia correr bem. e correu. depois disso muitas vezes a minha viagem correu mal:
- por duas vezes adormeci e fui sair em outra paragem (numa das vezes fui multada, mas argumentei e não me aconteceu nada);
- uma vez apanhei o comboio para o sentido errado
- uma vez um tipo começou a masturbar-se à minha frente
- por várias vezes perdi comboios importantes
- por várias vezes senhoras com bicos de papagaio e maleitas várias se sentaram junto a mim e desfiaram o rosário das suas desgraças
- por várias vezes vi e ouvi discussões entre o revisor e os passageiros
- uma vez estava a chorar e uma senhora ofereceu-me um papel da Igreja Universal do Reino de Deus. Então aí é que eu chorei!
houve alturas em que, por apanhar sempre o mesmo comboio, conhecia os passageiros. um dia em que eles não apanhavam aquele comboio, interrogava-me o que lhes teria acontecido: teriam sido despedidos, teriam ficado retidos no trabalho por algum problema de última hora, tinham conhecido o homem/mulher da sua vida... (sim, porque conhecer o homem/mulher da nossa vida faz-nos perder comboios. ou pelo menos, sair dos trilhos). de há uns dois anos para cá, apanho sempre o mesmo comboio de regresso a casa. já o perdi, mas não foi porque tivesse conhecido o homem/mulher da minha vida. foi porque fiquei na conversa, porque já saí tarde do trabalho, porque fui ao teatro, cinema, ver montras ou jantar fora. porque apanho sempre o mesmo comboio, conheço algumas das pessoas que nele viajam. o que sei delas é uma mistura de factos e fantasias. os factos vêm do que lêem, do que dizem ao telemóvel, do lugar onde entram e onde saem... a fantasia começa para além disso tudo. apresento-vos os meus companheiros de viagem. alguma semelhança com a realidade não será pura coincidência
"a senhora da fnac"
a senhora da fnac veste de preto, muito clássica. na realidade não trabalha na fnac, mas a forma como veste faz-me acreditar que sim. cabelo ondulado negro, preso por vezes com dois travessões, um de cada lado das têmporas. raras vezes em rabo-de-cavalo. sapatos rasos pretos, sem qualquer ornamento, calças de tecido pretas ou saia (mas igualmente preta). fala baixo, tem as mãos e o rosto muito brancos. lê a Time e artigos sobre equações em inglês. imagino que mora sozinha e é professora de bio-química ou qualquer coisa assim. penso que é próxima dos pais, mas não tem namorado.
"o senhor do bangladesh"
não sei se é do bangladesh, mas sei que vende rosas em invólucros de plástico, que organiza em degradé num bouquet. a ele traz preso, com elásticos, duas bandoletes de plástico que dão luz, a imitar o laço da Minnie, só que cor de rosa e roxo. fala muito ao telemóvel, uma língua que não compreendo e que parace não ter sinais de pontuação. cheira sempre a pó-de-talco e quando cumprimenta o revisor, leva a mão ao coração. não consigo compreender como vive daquilo. provavelmente tem uma loja com um grande cartaz com um ganesha a ornamentar uma parede, onde vende lenços da moda, cachimbos de água e incenso de ópio. por vezes quando tira o passe e o mostra ao revisor, reparo que tem a fotografia de crianças guardada na carteira e então acredito que está cá por eles.
"a senhora da loja de roupa"
conhecia-a num daqueles dias em que cheguei à estação a correr e, mesmo assim, perdi o comboio. a senhora em causa também havia perdido esse comboio. encetamos conversa - o que não é nada o meu tipo, desde já vos digo! afinal tínhamos conhecimentos em comum. a senhora da loja de roupa confessou-me que havia sido proprietária de uma cadeia de lojas de roupa nos anos 80, 90. entretanto as coisas mudaram e claro, apareceram as grandes lojas como as Zaras e as Bershkas. as lojas foram fechando e ficou a senhora, que não sei o que faz. ela tem assim um ar hippie, sempre com roupas feitas de múltiplos tecidos e sacos de pano. tem uma ou duas netas, lê livros de auto-ajuda e coisas sobre o poder da mente e como podemos ultrapassar os medos e cenas do género. é muito simpática. sempre que me sento junto dela, falamos do tempo. digo-lhe invariavelmente:  "se fosse eu que mandasse, era primavera ou verão todo o ano. sabe o que me preocupa? as cerejas. se não há cerejas,... isso é que é um problema"
"o senhor de idade"
já o conhecia antes mesmo de o ter apanhado várias vezes naquele comboio. o que sei dele é que é um homem muito alto, muito forte, sempre de fato e gravata, cabelo branco puxado para trás (não sei se oleoso ou com algum produto). caminha como um gigante, com o pé a assentar todo de uma vez no chão (dizem que tem pé raso e por isso não pôde ir à tropa). dizem também que tinha uma amante. digo que "tinha" e não que "tem" porque a esposa, a legítima já morreu. Uma vez vi-o com a outra e, escondida atrás de um carro com uma amiga, gritei-lhe: "Olhá a Beta!!!" (a Beta era a esposa, que deus a tenha). tem muitos problemas de saúde que combinam certamente pés pouco ágeis com peso em excesso. sempre que se senta procura encetar conversa com alguém: "então, já bai pra casa? isso é que foi trabalhar... Hoje bai mais tarde que ontem... Tem quem lhe faça o jantar? É que se num tem... isso é que é mau. Mas bocê mora ali perto da padaria, num é?" Mesmo que uma pessoa não deseje saber a vida de ninguém, fica a saber o que ouve e a imaginar o que o outro cala.
 
a "educadora de infância"
é uma moça jovem que, segundo me apercebi, está noiva. traz sempre um swatch do dia dos namorados (beluga a vomitar) e se não me engano, tem aliança. não me perguntem em que mão, mas acho que está noiva. é educadora de infância e leva aquilo a sério. pelos vistos, mesmo entre a formação dos nossos jovens, há espaço para intrigas e ciumeira... enfim, problemas no trabalho. sei disto porque a moça passa por vezes uma hora da viagem a telefonar para pessoas para falar de nada. "então, tudo bem? liguei para saber se estava tudo bem contigo. temos de combinar qualquer coisa. e os teus meninos, estão bons? já não os vejo há tanto tempo..." é isto a conversa. por vezes evolui para os problemas laborais, dependendo de quem está do outro lado, mas no geral é isto. as coisas acabam com "beijinhos, beijinhos, sim, até logo, beijinhos, adeus, para ti também, beijinhos grandes, tchau, tchau"
 
"outros"
- o jovem que lê Deleuze em francês e faz anotações a lápis. e não, ele não é professor de filosofia. parece-me que é designer;
- a moça que usa linguagem vernacular e... digamos... popular, não se coibindo de mostrar a sua satisfação com alguns elementos do sexo masculino que entram e saem;
- a cabeleireira que conta toda a vida consoante o banco onde se senta. é linda, é uma mulher linda. só é pena fumar. às vezes apetece-me dizer-lhe: "isso estraga-lhe a pele";
- o revisor que gosta de espreitar o que estou a ler;
 
um destes dias deixo de fazer viagens de comboio e aí quero ver como vou pôder voltar a fazer people watching.
abraços, b.