quinta-feira, março 31, 2016

jururu

domingo, março 27, 2016

- o carteiro -

 


















Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a Vase
1888
National Gallery, Londres 

viajo de comboio todos os dias, desde os meus oito anos. ainda me lembro da primeira vez que viajei sozinha. fui para a estação com a minha mãe, mas como ela tinha passe, entrou na composição e ficou à minha espera (à espera que eu tirasse bilhete), entre as portas do comboio. o maquinista porém, sem contemplações e lá do seu cubículo, carregou no botão para as portas fecharem. a minha mãe afogueada e aflita ainda acenou com o braço, mas as portas bufaram e fecharam-se. eu fiquei na gare, com o bilhete na mão e o coração a bater rápido, mas calma. o que é que podia correr mal? eu tinha oito anos, nenhum ou quase nenhum dinheiro comigo, era ajuízada e já tinha feito aquilo quinhentas vezes. o segredo era fazer um ar blasé, quase distraído e tudo ia correr bem. e correu. depois disso muitas vezes a minha viagem correu mal:
- por duas vezes adormeci e fui sair em outra paragem (numa das vezes fui multada, mas argumentei e não me aconteceu nada);
- uma vez apanhei o comboio para o sentido errado
- uma vez um tipo começou a masturbar-se à minha frente
- por várias vezes perdi comboios importantes
- por várias vezes senhoras com bicos de papagaio e maleitas várias se sentaram junto a mim e desfiaram o rosário das suas desgraças
- por várias vezes vi e ouvi discussões entre o revisor e os passageiros
- uma vez estava a chorar e uma senhora ofereceu-me um papel da Igreja Universal do Reino de Deus. Então aí é que eu chorei!
houve alturas em que, por apanhar sempre o mesmo comboio, conhecia os passageiros. um dia em que eles não apanhavam aquele comboio, interrogava-me o que lhes teria acontecido: teriam sido despedidos, teriam ficado retidos no trabalho por algum problema de última hora, tinham conhecido o homem/mulher da sua vida... (sim, porque conhecer o homem/mulher da nossa vida faz-nos perder comboios. ou pelo menos, sair dos trilhos). de há uns dois anos para cá, apanho sempre o mesmo comboio de regresso a casa. já o perdi, mas não foi porque tivesse conhecido o homem/mulher da minha vida. foi porque fiquei na conversa, porque já saí tarde do trabalho, porque fui ao teatro, cinema, ver montras ou jantar fora. porque apanho sempre o mesmo comboio, conheço algumas das pessoas que nele viajam. o que sei delas é uma mistura de factos e fantasias. os factos vêm do que lêem, do que dizem ao telemóvel, do lugar onde entram e onde saem... a fantasia começa para além disso tudo. apresento-vos os meus companheiros de viagem. alguma semelhança com a realidade não será pura coincidência
"a senhora da fnac"
a senhora da fnac veste de preto, muito clássica. na realidade não trabalha na fnac, mas a forma como veste faz-me acreditar que sim. cabelo ondulado negro, preso por vezes com dois travessões, um de cada lado das têmporas. raras vezes em rabo-de-cavalo. sapatos rasos pretos, sem qualquer ornamento, calças de tecido pretas ou saia (mas igualmente preta). fala baixo, tem as mãos e o rosto muito brancos. lê a Time e artigos sobre equações em inglês. imagino que mora sozinha e é professora de bio-química ou qualquer coisa assim. penso que é próxima dos pais, mas não tem namorado.
"o senhor do bangladesh"
não sei se é do bangladesh, mas sei que vende rosas em invólucros de plástico, que organiza em degradé num bouquet. a ele traz preso, com elásticos, duas bandoletes de plástico que dão luz, a imitar o laço da Minnie, só que cor de rosa e roxo. fala muito ao telemóvel, uma língua que não compreendo e que parace não ter sinais de pontuação. cheira sempre a pó-de-talco e quando cumprimenta o revisor, leva a mão ao coração. não consigo compreender como vive daquilo. provavelmente tem uma loja com um grande cartaz com um ganesha a ornamentar uma parede, onde vende lenços da moda, cachimbos de água e incenso de ópio. por vezes quando tira o passe e o mostra ao revisor, reparo que tem a fotografia de crianças guardada na carteira e então acredito que está cá por eles.
"a senhora da loja de roupa"
conhecia-a num daqueles dias em que cheguei à estação a correr e, mesmo assim, perdi o comboio. a senhora em causa também havia perdido esse comboio. encetamos conversa - o que não é nada o meu tipo, desde já vos digo! afinal tínhamos conhecimentos em comum. a senhora da loja de roupa confessou-me que havia sido proprietária de uma cadeia de lojas de roupa nos anos 80, 90. entretanto as coisas mudaram e claro, apareceram as grandes lojas como as Zaras e as Bershkas. as lojas foram fechando e ficou a senhora, que não sei o que faz. ela tem assim um ar hippie, sempre com roupas feitas de múltiplos tecidos e sacos de pano. tem uma ou duas netas, lê livros de auto-ajuda e coisas sobre o poder da mente e como podemos ultrapassar os medos e cenas do género. é muito simpática. sempre que me sento junto dela, falamos do tempo. digo-lhe invariavelmente:  "se fosse eu que mandasse, era primavera ou verão todo o ano. sabe o que me preocupa? as cerejas. se não há cerejas,... isso é que é um problema"
"o senhor de idade"
já o conhecia antes mesmo de o ter apanhado várias vezes naquele comboio. o que sei dele é que é um homem muito alto, muito forte, sempre de fato e gravata, cabelo branco puxado para trás (não sei se oleoso ou com algum produto). caminha como um gigante, com o pé a assentar todo de uma vez no chão (dizem que tem pé raso e por isso não pôde ir à tropa). dizem também que tinha uma amante. digo que "tinha" e não que "tem" porque a esposa, a legítima já morreu. Uma vez vi-o com a outra e, escondida atrás de um carro com uma amiga, gritei-lhe: "Olhá a Beta!!!" (a Beta era a esposa, que deus a tenha). tem muitos problemas de saúde que combinam certamente pés pouco ágeis com peso em excesso. sempre que se senta procura encetar conversa com alguém: "então, já bai pra casa? isso é que foi trabalhar... Hoje bai mais tarde que ontem... Tem quem lhe faça o jantar? É que se num tem... isso é que é mau. Mas bocê mora ali perto da padaria, num é?" Mesmo que uma pessoa não deseje saber a vida de ninguém, fica a saber o que ouve e a imaginar o que o outro cala.
 
a "educadora de infância"
é uma moça jovem que, segundo me apercebi, está noiva. traz sempre um swatch do dia dos namorados (beluga a vomitar) e se não me engano, tem aliança. não me perguntem em que mão, mas acho que está noiva. é educadora de infância e leva aquilo a sério. pelos vistos, mesmo entre a formação dos nossos jovens, há espaço para intrigas e ciumeira... enfim, problemas no trabalho. sei disto porque a moça passa por vezes uma hora da viagem a telefonar para pessoas para falar de nada. "então, tudo bem? liguei para saber se estava tudo bem contigo. temos de combinar qualquer coisa. e os teus meninos, estão bons? já não os vejo há tanto tempo..." é isto a conversa. por vezes evolui para os problemas laborais, dependendo de quem está do outro lado, mas no geral é isto. as coisas acabam com "beijinhos, beijinhos, sim, até logo, beijinhos, adeus, para ti também, beijinhos grandes, tchau, tchau"
 
"outros"
- o jovem que lê Deleuze em francês e faz anotações a lápis. e não, ele não é professor de filosofia. parece-me que é designer;
- a moça que usa linguagem vernacular e... digamos... popular, não se coibindo de mostrar a sua satisfação com alguns elementos do sexo masculino que entram e saem;
- a cabeleireira que conta toda a vida consoante o banco onde se senta. é linda, é uma mulher linda. só é pena fumar. às vezes apetece-me dizer-lhe: "isso estraga-lhe a pele";
- o revisor que gosta de espreitar o que estou a ler;
 
um destes dias deixo de fazer viagens de comboio e aí quero ver como vou pôder voltar a fazer people watching.
abraços, b.

sexta-feira, março 25, 2016

- original soundtrack -

esta música é tão linda que até dói

When I fall in love it will be forever
Or I'll never fall in love
In a restless world like this is
Love is ended before it's begun
And too many moonlight kisses
Seem to cool in the warmth of the sun

When I give my heart it will be completely
Or I'll never give my heart
And the moment I can feel that you feel that way too
Is when I fall in love with you.

And the moment I can feel that you feel that way too
Is when I fall in love with you.

(When I fall in love, Nat King Cole)
- não vai mais vinho para essa mesa -
[no Natal]
pai - Vou dar-te uma agenda de presente de Natal. Queres?
eu - sim. Se quiseres dar uma agenda, aceito.
pai - uma daquelas agendas masculina?
eu - ... masculina ou feminina...
pai - não, não é isso... é uma agenda daquelas malusquinas...
eu - malusquinas?
pai - molesquinas!
eu - ah!... moleskine! era isso que querias dizer?
 - o carteiro -

 e o Homem criou Deus... (XIII)
 
Na última vez falei das guerras intestinas entre o poder religioso e o poder político e como um se imiscuía no domínio do outro. Com o morte de Thomas Becket às mãos de apoiantes da causa de Henrique II (que pretendia diminuir o âmbito de manobra da Igreja e alcançar maior independência do governo face a Roma), a Igreja alcança uma vitória moral, já que pode contribuir para a causa com um mártir. Há no entanto um outro conflito que ninguém consegue resolver: aquele que opõe os diferentes senhores da Europa. Em 1095 a Europa estava devastada pelas quezílias que opunham os grandes senhores: a brutalidade entra no continente (após os bárbaros) e mina a ideia e desejo de civilização. Estes senhores, para se defenderem, convocam pequenos exércitos de homens que lutam pelos seus interesses. Mas eis que a paz surge... e o que se faz com homens treinados para lutar, em tempos de paz? O papa Urbano II teve resposta a esta pergunta: enviam-se estes homens para Jerusalém a fim de lá continuarem uma guerra; desta feita, uma Guerra Santa. A ideia que sai do conselho de paz convocado pelo Papa em Clermont é que a brutalidade e violência em potência na Europa podiam ser aproveitadas em prol do Cristianismo, no Oriente, em Jerusalém, cidade de Jesus ocupada pelos muçulmanos. Estes são, obviamente, os cruzados. Eram cavaleiros (não só no sentido nobre da coisa) que partiram das suas cidades inseridos em grupos ou sozinhos, persuadidos por pregadores inflamados. Milhares de homens deslocaram-se até Constantinopla, cidade que abria as portas para o Oriente. Como referi, convém lembrar que estes cruzados não eram apenas os filhos das melhores famílias que se tornavam cavaleiros e - cumprindo o seu dever, combatiam. Entre eles seguiam os mais pobres dos homens que esperavam alcançar riqueza ou simplesmente fugir da miséria. O problema foi que muitos pensaram: porquê esperar por chegar a Constantinopla para chacinar os infiéis e pilhar as suas cidades, se os temos aqui mesmo, na Europa? Estes infiéis a que eles se referiam não eram os muçulmanos. Eram outro tipo de infiéis; eram infiéis que tinham surgido primeiro que os próprios cristãos e que reclamavam para si a crença no Verdadeiro Deus: os judeus. Apesar dos esforços dos bispos cristãos para esconder e proteger os judeus, milhares foram massacrados e mortos às mãos dos cruzados. Mas a coisa não ficou por aqui... Com pouco, ou mesmo nenhum planeamento, com nenhuma organização e sem mantimentos, os cruzados roubaram tudo o que podiam por onde passavam e depressa se tornaram temidos e odiados. Alguns destes homens nunca chegaram a sair da Europa e a alcançar Constantinopla, mas um grupo de cruzados atingiu a Ásia Menor. Mesmo estes não tinham tido preparação ou disciplina e por isso acabaram por ser massacrados pelos turcos. Em 1096 surge uma segunda vaga de cruzados. Desta vez os que partem são verdadeiros cavaleiros, mas nem isso lhes vale já que voltam a ser massacrados, passam fome e são humilhados. Os cruzados vêem nisto um teste à sua Fé que apenas se aprofunda ante as adversidades.

O impacto das cruzadas na Europa é enorme: unificam-se inimigos mortais numa causa comum e pela primeira vez emerge aquilo que hoje classificamos como identidade europeia. Estabeleceram-se normas para as trocas, novos impostos, a Igreja fortaleceu a sua posição e aumentou a riqueza que já possuia, etc... Apesar de tudo isto houve um grande custo para a Europa: as cruzadas foram o primeiro acto cooperativo da Europa, acto este que em vez de se destacar da barbárie, caracterizou-se por ela.
- ars longa, vita brevis -
hipócrates
 
bom, hoje não tinha nenhum "antes e depois". quer dizer, tinha um mas não me satisfazia, por isso resolvi apresentar-vos isto. isto é um quadro do Manet. coisa normal, certo? nem por isso... não sei se o Manet era um misógino. ele disse um dia acerca da Mary Cassatt, ou da Berthe Morisot (não interessa bem qual delas foi) algo parecido com: "esta mulher tem qualquer coisa [no sentido do talento]. só é pena ser mulher". Eu não o tinha por machista. achava - e acho - que ele até era como o nosso presidente: "quase feminista".
 
o que me interessa não é falar sobre feminismo ou machismo. parece-me que apesar daquela frase, o Manet sabia do valor das mulheres e dava-lhes um lugar que era mais do que o mero papel de amante que espera pelo seu amado, enquanto se entretém com trivialidades. lembremo-nos que ao mesmo tempo que o Salon admirava isto:
 


















Bouguereau
Day
1884
Colecção Privada


Manet pintava mulheres reais (e não mulheres usadas como alegorias), nuas, junto a homens vestidos, e usava os animais (que em Bouguereau e Cabanel servem para entreter a mulher, como se ela estivesse ao nível do animal e sempre nua, à espera de macho e na sua condição... animal) de outra forma. Na Olímpia, temos uma mulher nua, é verdade, mas que nos olha nos olhos; uma mulher nua cujo modelo era uma prostituta; uma mulher nua que não é deusa, nem santa, nem alegoria. E junto a ela, quase a confundir-se com o fundo, um gato preto.














Edouard Manet
Olympia
1863
Musée d'Orsay, Paris
























Edouard Manet
Olympia (pormenor)
1863
Musée d'Orsay, Paris


Na "Mulher com papagaio", vemos uma mulher vestida - e muito tapada - com um papagaio, conhecido por ter a capacidade de repetir o que os humanos dizem. Podemos pois considerá-lo um animal inteligente. A sua dona não podia também ser menos que isso: uma mulher inteligente. Mas cada um está no seu "poleiro": a mulher existe por si, não estende os dedos para o papagaio; este por sua vez ocupa o seu lugar. (há um quadro, cujo nome não recordo, que mostra uma mulher nua em cima de um leito a brincar com um pássaro que pousa nos seus dedos. ao lado está o poleiro do pássaro vazio. nesse sentido, estas duas pinturas são antagónicas).
 
Manet
Woman with parrot
1866
MoMA, Nova York
 
Manet
Woman with parrot (pormenor)
1866
MoMA, Nova York
 
Aqui Manet apresenta uma actualização de um quadro de Goya. Para o que nos interessa, destaquei o cão, junto a senhora sentada. As mulheres olham em frente; o  homem, em segundo plano, olha para uma delas; e um segundo homem, no fundo da sala, olha para a outra mulher. São elas que estão à varanda e eles ocupam o segundo plano o que aliás é muito comum nos quadros do Manet. Nestas pinturas, e em outras como "Nana", "On the beach", "The Reading", o homem é um acessório, um apontamento, relegado para planos mais distantes, indefinido, na sombra, ou até cortado (veja-se o caso de "Nana").

Manet
The Balcony
1868
Musée d'Orsay, Paris
 
Manet
The Balcony (pormenor)
1868
Musée d'Orsay, Paris
 
A modelo deste quadro é a mesma que Manet usou para pintar o Olímpia., de seu nome Victorine. Parece que a miúda teve uma vida complicada: um dia simplesmente desapareceu porta fora e nunca mais voltou. A criança era a filha de um amigo de Manet, de seu nome Alphonse Hirsch, em cujo jardim, situado perto da Gare de Saint-Lazare a cena foi composta. É difícil de perceber, mas a modelo segura no colo um cachorro, muito pequeno mesmo. É uma criatura que se confunde com o jornal e que eu interpreto da seguinte forma:
este quadro tem tudo o que é contrário à ideia de maternidade com a mulher que lê o jornal e olha para nós, mais interessada em outras coisas do que aquelas que aparentemente deveriam ser as suas como cuidar da criança, dar carinho ao cachorro. ela está mais interessada na leitura. a leitura era por vezes considerada má para as mulheres. os homens temiam que elas ficassem histéricas e cheias de ilusões por lerem demasiados romances. por isso se casavam cedo e os pais temiam aquelas que recusando candidatos, passavam os dias entre os livros.
Manet
The Railway
1873
The National Gallery of Art, Washington
 
Manet
The Railway (pormenor)
1873
The National Gallery of Art, Washington
 
Quando Napoleão III casou com uma noiva espanhola, a moda "espanhuela" assolou França e Manet não ficou indiferente a esse interesse generalizado. Apesar de nos parecer uma cena normal de uma mulher a tourear, a verdade é que a pintura deu origem a alguns escândalos. A modelo é, mais uma vez, Victorine Meurent que também foi modelo do Déjeuner sur l´herbe. É esta mulher vestida de homem (de corsários, com o cabelo escondido) que domina a força do touro, uma força evidentemente masculina.
Manet
Mademoiselle V... in the Costume of an Espada
1862
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque
 
ManetMademoiselle V... in the Costume of an Espada (pormenor)
1862
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque
 
Não por isso de estranhar este quadro que parece muito simples, mas tem o que se lhe diga. Pode ser que seja uma homenagem à mulher, o que de resto corroborava o acima escrito. Ela - Madame Guillemet - olha para fora da pintura, todo o seu corpo e rosto de viram para o exterior; ou seja, nela tudo se desenvolve da esquerda para a direita, como uma progressão. Nele - Monsieur Guillemet - pelo contrário tudo é ensimesmamento, sombras, um corpo curvado sobre si mesmo. Ele quase lhe toca na mão e parece até olhar nesse sentido, mas ela mostra-se quase absorta. Será um casamento a passar por problemas? Eles devem ser casados: ele pelo menos tem aliança e quase toca na mão dela o que nos leva a crer que ela seria sua mulher. Amante... não me parece. Se assim fosse tudo seria fogo, química, mas não... No lado dela há flores e pormenores; no lado dele grandes palmas sem detalhe. e por fim, o corpo dela, a fazer pendant com o vaso, não só na linha, mas também na cor. se o Manet era um misógino, não parecia nada... 
 
Edouard Manet
The Conservatory/ The Winter Garden
1878-1879
Gemaldegalerie, Berlim
 
Edouard Manet
The Conservatory/ The Winter Garden
1878-1879
Gemaldegalerie, Berlim
- não vai mais vinho para essa mesa -


sexta-feira, março 18, 2016

- o carteiro -

num destes dias recebi, no beluga@portugalmail.com, um email de uma pessoa que não me conhecia e que não conheço. essa pessoa, numa atitude que muito me sensibilizou, expressava a sua tristeza pela tristeza muitas vezes patente nos meus posts. e terminava dizendo "tudo passa". sim, tudo passa. mas há coisas que voltam. e voltou ao fim de 19 anos. durante esses 19 anos, não senti a angústia e o medo que sinto hoje sempre que tenho de regressar a casa ao fim do dia. quando meto a chave na porta, o coração dentro do peito parece um cavalo. às vezes evito levantar a cabeça de imediato. mal a levanto percebo logo. diz-me que não, que é impressão minha. mas até aos meus 17 anos de idade vivi com isso todos os dias... há coisas que não se esquecem. não vou passar por isto outra vez, passados 19 anos, não vou deitar-me a chorar, com medo de um barulho, por menor que seja. às vezes tenho vontade de sair porta fora, mas penso "vou para onde? para casa de uma amiga? de um familiar? e o que é que digo? com que dinheiro?"
 
fiz de tudo. fiz até aquilo que não devia ter feito. achava que deus me iria ajudar, mas nunca dependeu de deus ou de mim. tento compreender, pergunto-me "mas porquê agora? o que é que correu mal? sou eu? a culpa é minha?" sinto revolta, desilusão. tristeza também, sim. durante o dia faço o que tenho a fazer com o meu melhor sorriso, mas há noite... chego até a pensar que isto é um castigo por 19 anos de alívio, de felicidade.
45Kgs
(44, 900Kgs, na verdade)
- não vai mais vinho para essa mesa -
 







 


terça-feira, março 15, 2016

vamos à vida.
- original soundtrack -
 
- não vai mais vinho para essa mesa -

quando vejo isto, farto-me de rir! (aliás, todo o filme é muito bom: a cena no banco, os pais dele...). é que eu sou este tipo de idiota: que ensaia passos de dança no chuveiro, quase cai e depois fica a pensar "será que alguém viu"
(claro que ninguém viu, rapariga! estás sozinha na casa de banho!!!)
 
 

- o carteiro -

e o Homem criou Deus... (XII)
 
Em Bizâncio o cristianismo também faz progressos: em 926 os búlgaros são convertidos, em 974, os sérvios, e em 988 Vladimir, príncipe de Kiev é baptizado. Toda a Rússia é, aliás, convertida. Há uma nova vitalidade que pode ser vista na proliferação de catedrais (cada vez mais e maiores) como o Duomo em Siena, São Marcos em Veneza, Santiago de Compostela em Espanha... Elas são não só o contexto para o ritual, como também, pólos de ensino e conhecimento (universidades). Apesar da estabilidade que a cristandade vive, há dois conflitos que permanecem: o conflito entre Roma e Bizâncio (com os líderes das duas Igrejas a excomungarem-se mutuamente) e o conflito entre o poder religioso e o poder político.

Neste último caso, destaca-se o episódio de Canossa em 1077 quando o Imperador Henrique IV pede ao Papa Gregório VII que revogue a sua excomunhão. O Imperador desloca-se até Canossa, local onde o Papa se encontra para pedir que ele reveja a sua excomunhão (esta excomunhão tinha sido proferida na sequência da Questão das Investiduras, quando imperador e Papa discutem entre si para ver qual deles decide que bispos deviam ser investidos). Assim, e durante 3 dias, o Imperador ajoelha-se na neve, no exterior do Castelo do Papa e pede perdão para salvar a sua alma mortal. Este acto, que ficou para História (até se usa a expressão "ir a Canossa" - humilhar-se), pode ter sido apenas uma estratégia de Henrique IV para recuperar o poder aos olhos dos seus súbditos, bem como uma forma de acalmar os ânimos. Com o perdão do Papa Henrique poderia continuar a ser imperador e, quem sabe, reunir forças para enfrentar novamente o Papa. De facto, em 1080, Henrique IV regressa, leva ao exílio Gregório VII e coloca no poder um Papa que lhe é mais favorável (o Antipapa Clemente III). Note-se aqui algo importante: Gregório VII foi o Papa que insistiu no celibato dos clérigos. Isto hoje pode parecer-nos natural, mas foi, na altura, muito difícil. Até aí os padres tinham as suas famílias (filhos, esposas...) e de um momento para o outro foi-lhes dito que os seus filhos eram réprobos e as suas esposas, prostitutas.

Outro episódio importante no conflito entre Igreja e Estado ocorre em 1170 e mais uma vez, opõe dois homens persistentes e poderosos: o Rei Henrique II e Thomas Becket. Henrique II nomeou Thomas Becket Arcebispo da Cantuária, em troca de alguns favores. Mas Becket não cede, levando o monarca ao desespero. Convencidos que estão a fazer a vontade do rei, 4 cavaleiros mostram-se disponíveis para matar Becket, o que acaba por acontecer, e no altar. O crime choca a Europa... Mesmo assim, mesmo após perder um dos seus mais devotos discípulos, a Igreja atinge uma vitória moral. Uma vitória de Pirro, digo eu...
- ars longa, vita brevis -
hipócrates

back to basics (é o mesmo que dizer, vamos voltar ao que interessa, aos posts com "sustânça")
aqui na terra não há cinema. houve, em tempos, mas agora fechou. nessa altura, o cinema passava muitos filmes de cowboys. um dia o meu pai ouviu um miúdo, junto ao cinema, dizer: "oh... é só filmes "dostrazan"!... é só ratos, só ratos e galifantes!" O galifante, esse animal mítico, para mim que ouvi esta história contada pelo meu pai, faz parte do grupo também composto por gambuzinos e unicórnios.
vá, trocem. mas houve um tempo em que o pessoal acreditava nestes e em outros animais. Na Idade Média, sem estradas, meios de comunicação social, população alfabetizada and so on, era natural que facilmente estas criaturas apenas faladas, mas nunca vistas, se tornassem coisas diferentes da realidade. Os animais, domésticos ou selvagens, abundavam em jóias, e mesmo em objectos utilitários que assim se tornavam mais agradáveis. Em livros sagrados, então nem se fala: o cordeiro que foi animal sacrificial pelos israelitas e depois adoptado como símbolo de Cristo, enfatizando o sacrífico deste pela Humanidade; o grifo, animal que acompanhava Apolo e guardava a luz, mantém a sua figura de guardião dos mortos no contexto cristão; o peixe, símbolo de Cristo por excelência... Para além destas representações naturais, os artistas medievais representavam também a interação das personagens cristãs com os animais como é o exemplo de Jonas e a Baleia, Daniel e os leões, Jesus a descer dos céus em forma de pomba (pombas feitas de materiais preciosos podiam ser vistas em altares bizantinos, suspensas); Jesus, humilde, a chegar a Jerusalém no Domingo de Ramos montado num burro  ou mesmo o tetramorfo: Lucas representado pelo touro; João pela águia; Marcos pelo leão e Mateus pelo anjo (bem sei que um anjo não é um animal). E depois, é claro, as bestas do apocalipse. Por volta do século V, as quatro bestas aladas do Apocalipse e também descritas por Ezequiel, eram igualmente usadas para representar os 4 evangelistas. Ah, para além disto tudo, e porque a orientação do pessoal mudou muito ao longo dos tempos (primeiro por causa da mudança de calendário, depois com o aparecimento de relógios cada vez mais rigorosos) os calendários com as actividades sazonais e os feriados, possuíam representações animais.
Duccio
Entrada em Jerusalém
1308-1311
Museo dell'Opera del Duomo, Siena
Relevo em marfim (Cristo em Majestade rodeado pelos 4 evangelistas) 
Século XIII
É neste contexto que vos venho falar de bestiários, já que de bestas não é preciso falar. basta abrir os olhos todos os dias e às vezes, mais do que uma vez por dia... Os animais, tal como referi no parágrafo acima, serviam como veículos para a envangelização e para a moralização. os bestiários desenvolveram-se na Europa medieval do século XII. Baseado em descrições do chamado Fisiólogo grego do século II e geralmente com acrescentos importantes de Isidoro de Sevilha, Santo Ambrósio e Rabanus Maurus, o bestiário é uma coleção de descrições de animais e interações entre eles e tinham tanto de história natural como de lendas, pretendendo ser isso mesmo: ensinamentos reais acerca de animais, mas também ensinamentos morais. O bestiário era um livro muito lido - por quem sabia ler - na Idade Média e servia como fonte de invenção artística. Para além de proporcionar e provocar uma interpretação ambígua acerca daquelas criaturas, o bestiário dava asas à imaginação para se divulgarem criaturas bizarras, muitas das quais apareciam na arte medieval. E algumas das lendas que daqui surgiram tiveram longa duração. O basilisco, por exemplo descrito na História Natural de Plínio é mencionado nos Contos da Cantuária do século XIV. Conotado com o diabo, o basilisco podia matar apenas pelo seu odor, vislumbre ou pelo som do seu assobio.
Basilisco
Kongelige Bibliotek
Gl. kgl. S. 1633 4º, Folio 51r
A manticora, de origem persa, com rosto de homem, corpo de leão e cauda de escorpião, possuía uma voz sedutora parecida com o som de uma flauta.
Manticora
Der Naturen Bloeme manuscript
c. 1350
National Library of the Netherlands
Já o centauro, com corpo de cavalo e torso de homem era vaidoso, mas capaz de chorar. 
Centauro
Bibliothèque Nationale de France
lat. 14429, Folio 116v

Mas para além destes animais imaginários, míticos, também figuravam nos bestiários, animais exóticos que acabavam por assumir uma forma imaginária porque a maior parte das pessoas nunca os tinha visto. Ou seja, os animais exóticos eram muitas vezes oferecidos como presentes diplomáticos a monarcas, vindos das peregrinações ou das cruzadas. Carlos Magno, ao que parece, recebeu um elefante do califa Harun-al-Rachid em 797; o rei Edgar da Escócia ofereceu um camelo ao rei da Irlanda, o nosso rei D. Manuel ofereceu um rinoceronte ao Papa Leão X, o rei Henrique I da Inglaterra tinha um pequeno zoo e o rei Carlos V mantinha leões naquilo que é hoje a Porte des Lions. Como as pessoas nunca tinham visto esses animais, as histórias e representações que circulavam acerca deles eram fantásticas. Veja-se o caso do rinoceronte desenhado por Dürer - que, segundo se pensa, é uma representação do rinoceronte que o rei D- Manuel ofereceu ao Papa. Durer nunca viu o rinoceronte, mas baseou o seu desenho numa descrição anónima da época. O resultado é um rinoceronte arraçado de lagosta. A avaliar por aquela carapaça...
















Albrech Dürer
Rhinocerus
1515
British Museum, Londres


(fim da primeira parte)
- não vai mais vinho para essa mesa -