terça-feira, novembro 24, 2015

- o carteiro -




















Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a Vase
1888
National Gallery, Londres

a música do Chico Buarque fez-me recordar as minhas festas de aniversário, na adolescência. até aos 18 anos, as minhas festas de aniversário eram muito tensas. "tensas" é de facto a palavra. aliás, até poucos meses antes do meu 18º aniversário os dias eram muito tensos. a minha infância e a minha adolescência foram uma sucessão de dias alternados de, por um lado, sossego e agradecimento a Deus, e por outro, tormenta, sobressalto e medo constante. a vida familiar foi de facto... difícil. pouco ortodoxa também. pensei em sair de casa, ir viver no meio da rua, pedir, deixar o liceu.

bom, mas isto a propósito das festas de aniversário. Já aqui falei das festas de aniversário da Bárbara, quando tínhamos 8, 9, 10 anos. Por volta dos 14, 15 anos, as minhas festas de aniversário passaram a ser data a fixar no calendário do pré-mulherio. Como o aniversário coincidia, mais coisa menos coisa, com o Carnaval, convocava um fim-de-semana em minha casa, longe dos pais e perto da diversão. Éramos cerca de 5 ou 6 raparigas, com as hormonas em ebulição, mochilas cheias de roupa (curta) e muita vontade de usar maquilhagem! lembro-me de um aniversário em que fomos ver um desfile de Carnaval, à noite, dispostas a metermo-nos com qualquer macho. e foi o que fizemos. A presa era um dos músicos da banda filarmónica de Alcobaça que tocava no seu tamborzinho. Das bancadas gritamos-lhe: "és lindo", "és meu", "no fim falamos". O rapaz corava, os companheiros faziam-lhe sinais com o clarinete e quando, no esquema de grupo, o moço se vira para o nosso lado, a Andreia atira-lhe uma serpentina que se enrola nas baquetas. O rapaz pára de tocar, desembaraça-se daquilo e desorientado, engana-se no esquema, sorrindo, tímido, ao que lhe dizíamos. Numa outra ocasião, qual aves de rapina, seleccionamos a presa do outro lado da rua. Era um rapaz com cabelo e olhos claros, com um sorriso enorme e cara bolachuda. Entre sinais combinou-se que o rapaz viria ter connosco no final do desfile. Assim foi! E aquilo deu pano para mangas, comigo e a Bárbara a discutir quem tinha o direito a "sofrer de amor" por ele. Sim, nós éramos dadas a um bom drama! Chegámos a colocar um anúncio no Blitz para o procurarmos, depois daquela noite, vejam lá!

Arranjávamo-nos, íamos para uma discoteca, dançávamos toda a noite, beijávamos quem nos apetecia. Não éramos promíscuas, não pensem... éramos adolescentes. Cantávamos o Purple Rain, e dançávamos o Something got me started, ou o Too Funky e tudo o que era música de Carnaval. Eu não bebia, mas uma vez envolvi-me numa briga com outra rapariga e o resultado foi quase o mesmo! 

Quando chegávamos a casa, ressacadas de fantasia, com os ouvidos a latejar, tomávamos o pequeno-almoço e discutíamos o quanto aquela noite tinha sido maravilhosa, planeando também uma nova vida a partir daí, pois certamente tudo iria ser diferente. Não sei porquê, mas depositávamos naquelas horas a mudança nas nossas vidas habituadas. achávamos que qualquer coisa nos viria resgatar do marasmo em que a indefinição da adolescência nos tinha deixado. 

Ouvíamos More Than Words dos Extreme (Nuno Bettencourt, se me estás a ler, é só para dizer que todas nós queríamos casar contigo e ter bébés teus na barriguinha) e sonhávamos (e chorávamos também, sem razão aparente, só porque sim) de olhos abertos com uma fantástica e irrepreensível existência futura onde a perfeição seria habituée de todas as horas. À medida que o Carnaval passava, a nossa coragem e ousadia - que no fundo era a coragem e ousadia que víamos nos videoclips da MTV e da VH1 - dissipava-se, e a languidez e melancolia instalavam-se como uma sombra que volta a cobrir a casa depois de uma tarde fria de Sol. Era já quarta-feira de cinzas, tempo de voltar à realidade de uma adolescência cheia de falhas, só apaziguadas pela crença nas amizades eternas, na música e na esperança imortal.