terça-feira, outubro 20, 2015

- o carteiro -

e o Homem criou Deus... (VII)

O Ocidente entra então na chamada Idade Média, também apelidada - erradamente - de Idade das Trevas. Se parte da Idade Média foi marcada pelas invasões bárbaras, queda de Roma (até se diz que a Idade Média começa com a queda de Roma a partir de 410) e consequente ressaca, parte também foi marcada pelo Renascimento Carolíngio, pela cópia sistemática de manuscritos, pelo início das descobertas, etc... A Idade Média é muito variada e não melhora progressivamente até nos aproximarmos do Renascimento, já que mesmo em "períodos bons" da Idade Média, houve aumento da mortalidade, ou guerras... Aliás, achamos muitas vezes que a História vai em crescendo, numa melhoria continua, o que, a ser verdade, implicava que não cometêssemos os mesmos erros do passado. E sabemos que não é assim.

Bom, há quem diga que Roma não caiu; apenas se deslocou para Oriente, para Constantinopla.Isto deveu-se a uma razão lógica: há medida que o Império crescia em diferentes direções de forma não uniforme, o seu centro geográfico deixou de ser Roma. Cria-se então uma nova capital, mais central que não entra em declínio, mas floresce antes. Comércio, arte, política, diplomacia, etc... tudo isso é incrementado. Não acredito muito que o que mudou foi apenas a posição geográfica e o nome. O Império agora é Bizâncio, mas algo mais mudou: já não tem a mesma certeza de invencibilidade de Roma. Aliás, Bizâncio aprendeu com os erros do passado. A prová-lo estão - estavam - os seus altos muros que fizeram de Constantinopla inexpugnável. Neste novo cenário geográfico a religião mantém-se, mas as questões cristológicas e teológicas continuam a dividir a cristandade. Entre 325 e 787 reunem-se 7 Concílios Ecuménicos (Niceia, Constantinopla, Éfeso, Calcedónia, Constantinopla, Constantinopla e Éfeso). No Concílio de Niceia, por exemplo, discutiram-se questões que nos parecem hoje tão irrelevantes como: "deverá uma crença ser considerada uma heresia"? E a religião era de tal forma parte tão integrante da vida de todos que a população participava nestas discussões; ou seja, estas questões não eram apanágio dos bispos. As principais questões opunham as igrejas do Oriente (sírios, palestinianos, egípcios) e eram quase sempre relativas à natureza de Deus. Uns defendiam o monofisismo; ou seja, que Jesus tinha apenas natureza divina. Outros defendiam que em Jesus coexistiam duas naturezas: a humana e a divina. Esta dissidência quase criou a ruptura entre as igrejas do Ocidente e do Oriente. Outro exemplo: no Concílio de Calcedónia debate-se a questão monofisista mais a fundo e decide-se bani-la, acentuando assim os pressupostos do Credo de Niceia que afirma a dupla natureza de Cristo. Os monofisistas são condenados, principalmente os da Síria e da Palestina: padres e monges são deixados no deserto, mosteiros são queimados, etc... Em Alexandria, capital do monofisismo egípcio, chegam muitos monofisistas que fogem destas atrocidades. É neste cenário que Teodora chega à cidade. Teodora era filha de uma acrobata e de um domador de ursos. Quando o seu pai morre, Teodora vê-se faminta entre a multidão que mendiga. Torna-se actriz, talvez até prostituta e aos 20 anos parte com um amante, um governador, para África. Aí é abandonada por ele. Sozinha, parte para Alexandria e passa por uma transformação incrível a nível espiritual e social: converte-se ao cristianismo e regressa a casa, a Constantinopla onde conhece Justiniano, herdeiro da coroa imperial. Justiniano apaixona-se por ela, mas não tem autorização para casar com a bela Teodora já que os senadores não permitem que um jovem herdeiro se case com uma actriz. Mas por manobras de Justiniano a lei é mudada e os dois casam-se tornando-se assim, Imperador e Imperadora (esqueçam lá essa cena de Imperatriz). Teodora está agora em posição de ajudar os monofisistas cuja ajuda, aquando em Alexandria, ela nunca esqueceu.

4 Comments:

Anonymous pedro b. said...

'Tis Pity She's a Whore, ou “má sorte que ela fosse puta”. Existe um livro com esse título, uma peça de teatro do autor isabelino J. Ford (Má sorte que ela fosse puta, Lisboa: Estampa, 1983 [ed. original 1633]).
Mas a biografia de Teodora é incerta. É difícil saber se foi realmente uma prostituta e devassa, ou uma cidadã exemplar que protegeu as crianças e os direitos das mulheres. Isto acontece, em parte, porque muito do que sabemos sobre ela provem de Procópio, um contemporâneo que foi cronista do general Belisário. Procópio era uma personagem estranha (ou talvez não, talvez fosse apenas um pragmático homem da corte): escreveu um panegírico do general e do Imperador Justiniano, mas também uma crónica “secreta”, apenas descoberta muitos séculos depois nos arquivos do Vaticano. Nessa Apókryphe Istoría contradiz todas as suas afirmações anteriores e faz um relato com pormenores semi-pornográficos da vida da imperatriz. Segundo ele, Justiniano e Teodora eram verdadeiros demónios, no sentido metafórico e literal do termo, cujas cabeças tinham a capacidade de abandonar o corpo e deambular à noite pelos corredores do palácio imperial.

Robert Graves, o autor de “Eu Cláudio”, escreveu um romance histórico largamente inspirado nos escritos de Procópio: “Conde Belisário” (trad. de Fernanda Pinto Rodrigues), Lisboa: Estúdios Cor, 1964. Nesse livro, a imperatriz Teodora é retratada a uma luz relativamente benigna: inteligente e geralmente bondosa, mas também ciumenta e por vezes calculista. Os detalhes da sua vida ‘aventurosa’ – passe o eufemismo – antes do casamento com Justiniano, mantêm-se.

22/10/15 11:57 da manhã  
Anonymous pedro b. said...

Um esclarecimento: o livro de John Ford, “Má sorte que ela fosse puta”, nada tem a ver com a história de Teodora. Foi apenas um aparte.

Já agora, um outro pequeno aparte. Trata-se um comentário com que me deparei hoje de manhã, num livro que eu estou actualmente a ler e que me veio parara às mãos quase por acaso: W. Somerset Maugham, Exame de consciência, Lisboa: Livros do Brasil, s.d. [1982], p.229:

“Quando comecei a escrever este livro, avisei o leitor de que talvez a única coisa de que tinha a certeza era de que não tinha a certeza de nada mais. Tentava pôr em ordem os meus pensamentos sobre vários assuntos e não pedia que ninguém concordasse com as minhas opiniões. (…) E agora que chego a esta última parte do meu livro, sou constrangido mais ansiosamente do que nunca a repetir que o que escrevi constitui as minhas convicções particulares. Pode ser que sejam superficiais. Pode ser que algumas delas sejam contraditórias. Não é de esperar que conjecturas resultantes de sentimentos, pensamentos e desejos feitos de toda a espécie de ocasionais experiências (…) possam enquadrar-se na precisão lógica de um postulado de Euclides.”

22/10/15 12:23 da tarde  
Blogger Belogue said...

Olá professor, bom dia. Também ouvi falar das duas versões acerca de Teodora. Aliás, em qualquer livro de História ( e de história da arte), a forma como se fala dela é muito cuidada, com muitas ressalvas. Vou incluir o livro do robert graves na minha lista de natal. Li o"eu cláudio" e gostei muito. Quando estive em maiorca queria ter ido visitar o túmulo e a casa onde ele viveu, mas não tive coragem de dizer ao jimi...

23/10/15 7:02 da manhã  
Blogger Belogue said...

Muito obrigada pela citação. Até está relacionada com sócrates e o woody allen.
Bem, vou ver se durmo um bocadinho

23/10/15 7:05 da manhã  

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