segunda-feira, julho 27, 2015

Olá professor:

Estive a procurar e descobri algumas coisas: 
a) o trabalho de David Aubert não é de David Aubert, mas de Loyset Liedet. Nos trabalhos que pude ver do autor, não há nada que me lembre a repetição da gracinha (trocar os lugares dos objectos). 
b) Esta composição de Van Eyck lembra-me muito a de Petrus Christus em "The Holy Family in a Domestic Interior" de 1460, que na realidade é posterior ao Van Eyck. Mas a cama, a janela, os frutos, mantêm-se. Esta composição tem antecedentes com cerca de 50/100 anos. Veja-se a gravura "Concordia" de Cripijn van de Passe. A cama, o móvel do lado esquerdo, o cão e o espelho estão presentes. No fundo, o interior doméstico flamengo deveria ser assim e foi isso que Van Eyck retratou.



















Petrus Christus
Holy Family in a Domestic Interior
1460





















Crispijn van de Passe
Concordia
1589
Rijksmuseum, Amesterdão

c) No reflexo dos Arnolfini no espelho parece que os mesmos  não dão as mãos, já que não se percebe o braço dela. (O homem de vermelho é, segundo se pensa, Van Eyck que já se reratou em outras pinturas como "The Virgin of Chacellor Rolin" ou "The Madonna with Canon van der Paele". Aqui o pintor está reflectido na armadura da personagem mais à direita.)



















Jan van Eyck
The Arnolfini Betrothal
1434
National Gallery, Londres

d) A gárgula um pouco acima das mãos dos noivos é dupla: uma parte vira-se para a frente e outra para a parede. Isto não deverá ser descurado, uma vez que pode tratar-se, mais uma vez, da ironia da sociedade da época face ao casamento e às relações físicas e espirituais puras e desinteressadas.

Não respondi às suas perguntas sobre a troca dos objectos, mas não tenho de facto resposta. Vou continuar à procura.

4 Comments:

Anonymous pedro b. said...

Muito obrigado por esta generosa quantidade de nova informação sobre o quadro do Casamento dos Arnolfini, o ‘David Aubert no seu altelier’, Loyset Liédet, Petrus Christus, etc. A partir do que li aqui, também eu me pus a investigar e descobri algumas coisas curiosas. Em primeiro lugar, parece que há dúvidas de que o príncipe retratado na iluminura do Liédet seja realmente Carlos o Temerário.

Segundo informação recolhida na wikipédia holandesa (que consegui traduzir com alguma dificuldade):
Loyset Liédet (n. 1420 – m. depois de 1479, ou de 1484), era um miniaturista e pintor de iluminuras flamengo (ou holandês?), de alguma notoriedade na sua época. Entre 1470 e 1472 Liédet produziu 102 miniaturas /iluminuras (ou apenas 43, segundo outra fonte) para a Histoire de Charles Martel et de ses successeurs, um manuscrito encomendado por Filipe o Bom, mas que apenas foi terminado já no reinado de Carlos o Temerário (filho do anterior).
É nessa Histoire de Charles Martel [Brussels, Bibliothèque royale, ms.8 fol. 7] que se encontra a ilustr. ‘Carlos o Temerário visita o cronista David Aubert no seu studium’ [ou: surpreende David Aubert; ou: espia David Aubert]
Obs.: David Aubert (c.1413 — m. depois de1479) era um calígrafo francês que transcrevia e adaptava crónicas e romances de cavalaria para a corte dos Duques de Borgonha (i.e. Filipe o Bom e o seu sucessor, Carlos).

Aparentemente, a miniatura ‘Carlos visita/surpreende/espia David’ constitui uma variante pouco usual do “presentation portrait” (desconheço o nome técnico em português), numa possível alusão a um episódio semelhante, em que Alexandre o Grande visita o pintor Apeles no seu atelier. Cf. por exemplo:
http://www.wikigallery.org/wiki/painting_333756/Willem-van-Haecht/Alexander-The-Great-Visiting-The-Studio-Of-Apelles

(Obs.: Aubert é o calígrafo, mas não o pintor /miniaturista, como no episódio de Alexandre – confusos?). Aparentemente, o pintor Loyset Liédet incorporou a sua assinatura numa das ilustr., no início do vol. 4 (ms. 7, fol 9), coisa rara à época e que constitui “um eco de ambições van Eyckianas”.
http://www.oneonta.edu/faculty/farberas/arth/arth214_folder/burgundian_frontispieces.html

(van Eyck ficou também conhecido por assinar várias das suas obras, o que não era habitual). Alguns autores chamaram, além disso, a atenção para a semelhança da parede do fundo com o Casamento dos Arnolfini, que contem muitos dos mesmos objectos. (Obs.: a assinatura na parede do fundo de ‘Carlos visita/surpreende/espia David’ não é a de Liédet, nem a de van Eyck, mas sim a do Duque Carlos – confusos?)

Contudo, e ainda segundo a Wikipédia holandesa:
Costuma dizer-se que esta miniatura representa Carlos o Temerário a espionar David Aubert no seu estúdio. Isto é altamente improvável, dado que a figura que espreita não enverga o (tradicional) negro ducal nem traz consigo a cadeia do Tosão de Ouro (fundada por Filipe em 1430, para celebrar o seu casamento com Isabel de Portugal), com que os duques de Borgonha sempre aparecem representados.
Já agora, e para comparação, existe uma outra miniatura de título semelhante [ms. 6, fol. 9], ‘Filipe o Bom visita David Aubert’:
http://www.oneonta.edu/faculty/farberas/arth/Images/ARTH_214images/Manuscripts/Burgundian_Presentation/Aubert_Chas_Martel2.jpg

30/7/15 4:31 da tarde  
Anonymous pedro b. said...

Ainda sobre a “assinatura” na parede do fundo de ‘Carlos o Temerário visita o cronista David Aubert no seu studium:
trata-se do lema ou divisa de Carlos, Je I’ay emprins ("Eu o empreendi”). Uma homenagem de Loyset Liédet ao seu patrono (o duque) e, indirectamente, uma homenagem à arte do seu antecessor van Eyck? Um remoque do duque, dirigida ao cronista, David Aubert?
Entre os autores que chamaram a atenção para a semelhança da parede do fundo com o Casamento dos Arnolfini, pode referir-se Craig Harbison, Jan van Eyck: The Play of Realism, (2.a ed. revista e aumentada, Londres: Reaktion Books, 2012), que consultei no Googlebooks, até descobrir que também escreveu um artigo (de 44 páginas!), a que entretanto tive acesso: Harbison, Craig. "Sexuality and social standing in Jan van Eyck's Arnolfini double portrait." Renaissance Quarterly (1990): 249-291.
Este artigo foi depois incorporado no livro e é muito importante (pelo menos para um ignorante como eu) porque mostra diversos exemplos de “presentation portrait” (anteriores e posteriores ao quadro de Van Eyck), bem como um precedente iconográfico para o Casamento dos Arnolfini: uma gravura datada de c. 1600 (ou seja, c. de 150 anos depois - confusos?). ilustr. in Hadrianus Barlandus, Ducum Brabantiae Chronica, Amesterdão, 1600:
http://resolver.kb.nl/resolve?urn=urn:gvn:BVB01:MB1515DIPK&role=image&size=largest

Aí podemos ver a mesma janela à esquerda (mas isso seria o normal, em termos de composição) com um espelho convexo( !) acoplado, o mesmo casal com a mulher quase-grávida, o mesmo cãozinho branco (que aqui parece um leão em miniatura) ao lado da sua dona e, até, a mesma laranja esquecida no peitoril da janela. Harbison diz que se trata do retrato do “duque do Brabante, Angesius e sua esposa Begga”. Claro que nunca existiram quaiquer duques de Barbante com esse nome, mas isso é outra história.
(Obs.: na verdade, trata-se de ---Ansegisel (also Ansgise, Ansegus, or Anchises) (c. 602 or 610 – murdered before 679 or 662) was the son of Saint Arnulf, bishop of Metz. He served King Sigbert III of Austrasia (634–656) as a duke (Latin dux, a military leader) and domesticus.
---Saint Begga (also Begue, Begge) (615 – 17 December 693) was the daughter of Pepin of Landen (=Pepin the Old, or Pepin I), mayor of the palace of Austrasia, and his wife Itta of Metz. On the death of her husband, she took the veil and built a convent Andenne-sur-Meuse, where she spent the rest of her days as abbess.
Their son, Pepin II (c. 635 – 16 December 714), commonly known as Pepin of Herstal, was a military leader who de facto ruled Francia as the Mayor of the Palace; he became grandfather of Pepin the Short and great-grandfather of Charlemagne.)

Mas isto não é muito importante. Harbison aventa a hipótese de a gravura se ter baseado num retrato dos duques (não se percebe se dos supostos “duques” de Brabante ou dos duques de Borgonha), executado por van Eyck e entretanto perdido. Talvez esse retrato tivesse precedido o dos Arnolfini, servindo-lhe de modelo (porque Harbison acredita que os Arnolfini, apesar de burgueses, tinham aspirações aristocráticas).
(Obs.: no livro, p.43 Harbison entra em mais detalhes e considera que
“It is assumed that van Eyck was employed by Duke Philip to paint similar portraits of his ancestors and relatives. Perhaps this resulted in a prototypal image, on which both the Arnolfini Double Portrait and the Barbant engraving may have been modelled.”)

Claro que também poderia ter sucedido o contrário: a gravura, que afinal data de 1600, poderia ter tido como precedente iconográfico o quadro dos Arnolfini, sem ser necessário postular a existência de um Ur-retrato anterior. Eventualmente Harbison desdenha esta segunda hipótese porque lhe repugna aceitar que o retrato de um casal de burgueses pudesse servir de modelo a uma gravura representando nobres (neste caso uns vagos antepassados da dinastia carolíngia); a evolução deveria ter-se dado em sentido contrário, i.e. descendente.

30/7/15 6:15 da tarde  
Anonymous pedro b. said...

Ainda sobre o “antes e depois”, encontrei este retrato de Ansegius e Sta. Begga, da autoria de
Rubens (c.1612/15, Kunsthistorisches Museum, Viena), que parece vagamente inspirado no quadro dos Arnolfini (Begga aparentemente grávida), quiçá na gravura da Ducum Brabantiae Chronica.
http://farm5.static.flickr.com/4129/5081448063_e4f4cc0b26.jpg

30/7/15 6:16 da tarde  
Blogger Belogue said...

Olá professor, bom dia. Ainda não tive tempo de ler os seus três comentários, mas prometo ler e responder este fim de semana. Desculpe...
Até breve, b.

31/7/15 9:02 da manhã  

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