segunda-feira, julho 14, 2014

- o carteiro -
a terceira parte daquele trabalho sobre a esteticização da violência na fotografia de moda. sem as referências bibliográficas e sem as legendas que é para ninguém vir aqui meter o bedelho. 


Entretanto…
Entretanto o conceito de beleza voltou a mudar. Estes são tempos de mulheres novamente altas, mas com medidas mais modestas que as supermodelos dos anos 90. No entanto, este modelo de beleza é igualmente inacessível para a maior parte das mulheres e é mostrado com crueldade através de anúncios incisivos que nos perturbam, mas que são tão sedutores que não deixamos de desejar viver aquelas experiências. Os fotógrafos de moda são agora e cada vez mais, autores e artistas. Entre eles contam-se Peter Lindbergh, Tim Walker, Juergen Teller, Bruce Weber, Steven Meisel, Steven Klein, Terry Richardson, Inez and Vinoodh e Nick Knight. Obviamente nem todos escolhem a violência como mote: Tim Walker parece influenciado pelos contos de fadas e Terry Richardson particularmente interessado em cenas muito sexualizadas. Mas o nome mais alto é sem dúvida o de Steven Klein (1961-) que consegue tornar apelativo mesmo o que pode ser considerado feio e repugnante num mundo geralmente pautado pela beleza. O mote destes tempos passa pelo belo-horrível, por hospitais, matadouros, ringues de boxe, próteses, mulheres biónicas, homens misóginos e grávidos, cegueira, velhice, tortura e terror. Ao contrário dos seus antecessores que usavam luz para obter brilhos, Klein usa sobretudo a luz para provocar sombras e ambientes sulfurosos. Também ao contrário de Bourdin e de Newton, Klein não divide estritamente os comportamentos sexuais. Por isso joga com os papéis sexuais e com a homossexualidade que apesar de tudo, não é uma parte tão visível do repertório temático da fotografia de moda como a heterossexualidade. Klein também inovou ao dar cada vez menos importância ao que anuncia. A roupa e os acessórios tornam-se o pretexto para o fotógrafo desenvolver uma história de contornos geralmente macabros, tanto que muitas vezes a roupa é quase inexistente ou então pouco mostrada. 

É difícil escolher apenas uma fotografia de Klein pois todas elas abordam os temas referidos e de forma irrepreensível, embora Steven Meisel (1954-) seja mais literal.[1] Destacaríamos então a foto da figura 16 para a Interview de Março de 2012. Nela vemos Karolina Kurkova (loira) a conduzir Crystal Renn por um corredor de um espaço abandonado, semelhante a uma prisão ou a uma instituição de reabilitação mental. É o pormenor das chaves à cintura que corrobora esta ideia. O ascetismo de uma contrasta com a descompostura da outra; a maquilhagem perfeitamente colocada a mostrar Kurkova quase martirizada, por oposição a Renn sem sobrancelhas; uma muito esguia e a outra mais polpuda (Renn ainda é conhecida por ser uma modelo de tamanhos grandes). O espaço é asmático já que o tecto é muito baixo. Não obstante Klein mostrar um grande corredor, que nos indica a existência de mais espaços, as duas figuras femininas parecem enclausuradas, com Kurkova a exercer claramente poder sobre Renn. A luz é frontal e crua, exaltando esse poder e a lividez quase beatífica do rosto e do traje de uma e a ossatura da outra.[2] As duas modelos vestem roupa aparentemente simples que não se destaca na imagem. As duas de branco: uma ascética como uma enfermeira ou uma freira e a outra, como uma louca, enverga roupas complexas com atilhos. Como vemos, os trajes são apenas um pretexto para o fotógrafo mostrar o seu universo criativo. O que isto nos mostra é que a fotografia de moda supera mesmo aquilo que lhe dá nome e torna-se fotografia artística e quase autónoma.



















A dimensão tétrica da fotografia de moda pode ser sedutora e captar a atenção do observador por dar resposta a uma estética actual que como vimos não se limita à moda. Mas existe um outro lado deste tipo de fotografia: o lado atraente, o lado brilhante que mesmo fazendo uso da violência não deixa de seduzir quem a vê por fazer a apologia, ao contrário do exemplo anterior, de um estilo de vida que faz sonhar o consumidor comum. São imagens como a da figura 20 que nos mostram um ambiente luxuoso pelo uso dos espelhos, vidros, mármores, veludos e peles de animais. Este tipo de decoração do espaço é mais eloquente do que parece, já que tantos os espelhos, como os mármores e os veludos permitem obter brilhos e reflexos que contribuem ainda mais para a noção de estarmos perante um ambiente privilegiado. Por outro lado as peles remetem-nos para os anos 70, algo que é acentuado pelas cores pouco saturadas da fotografia. As mesmas peles servem de mote para o comportamento das modelos que se atacam como se fossem animais. Neste caso, e tratando-se de uma campanha publicitária para uma marca (Lanvin), o papel da roupa tem de assumir maior protagonismo, ao contrário do que acontecia nos editoriais de moda para revistas em que a fotografia tinha um carácter mais artístico. Na figura 21 podemos observar que as roupas são fluídas, originando, juntamente com a decoração, algum barroquismo, assim como contribuem para a ideia de movimento que é justamente o que se pretende numa fotografia que tenta transmitir um instante de um combate corporal. Também por isso as modelos são captadas com o cabelo no ar, como se no meio da liça. As roupas são igualmente, num dos casos, fortemente estampadas e por isso corroboram a ideia de excesso decorativo, de barroquização da cena. Na referida figura 20 as modelos dinamizam a cena com os corpos em diagonal, algo que não é displicente já que propositado. Forma-se entre elas uma linha que dinamiza a fotografia e coloca algum caos na imagem aparentemente bem comportada. Os acessórios são trazidos em primeiro plano para incentivarem a fidelidade à marca.











Fig. 20














Fig. 21


Esta não é, notoriamente a mais violenta fotografia de moda do nosso tempo. Recentemente a revista búlgara 12 publicou numa das suas edições um ensaio denominado “Victims of Beauty” onde mulheres bonitas eram apresentadas com cortes no pescoço e hematomas no rosto que ultrapassam em violência as fotografias que temos referido. Mas estas, e principalmente aquelas que são apresentadas em anexo mostram um lado belo, nada repulsivo dessa violência, sendo que no último caso se trata até de uma violência que a nossa sociedade considera aceitável por ser de uma briga entre mulheres, geralmente encarada com jocosidade. Relativamente à violência perpetrada contra homens, ela quase não existe na fotografia de moda e quando existe é exercida por mulheres, mas sempre numa vertente sádica, fetichista e que por isso não expressa a realidade. Apercebemo-nos por isso que a fotografia de moda é muito sensível a estereótipos, sendo até sexista e machista.[3]


Carapau de cauda na boca
Há quem defenda que a beleza é uma forma de violência porque chega até nós através dos nossos sentidos, sem pedir licença. E há várias explicações para sermos presenteadas com ela. As marcas e os fotógrafos podem optar pela violência como forma de publicidade com o propósito de nos chocar e assim lembrarmo-nos constantemente do nome representado por aquelas imagens. Por outro lado há a confusão entre arte e publicidade: as duas são diferentes e levam a que as marcas sejam reconhecidas e compradas, mais do que lembradas.[4] Mas mais interessante é porém a possibilidade desta ser uma reflexão que algumas marcas e fotógrafos fazem acerca do que se passa no mundo.[5] Custa-nos porém pensar que o façam com especial incidência na violência. Segundo o jornal Guardian[6], há um motivo para estas imagens proliferarem: se os estereótipos sexualizados da mulher, na nossa cultura, são passivos e vulneráveis, a indústria da publicidade percebeu que, pela lógica, não existe nada mais belo que uma mulher morta. Ao mesmo tempo têm a capacidade de criar narrativas acerca dessas ideias e com elas construir imagens mentais que materializam de forma vívida em fotografias de cores saturadas, impressas em papel brilhante, que nos atraem não só por essas características, mas também porque nos resgatam da imutabilidade e do ennui do quotidiano. 

Stendhal escreveu “A beleza não é mais que promessa de felicidade”[7], assim como um Prozac. O Belo, tal como o Amor é uma escada que subimos para contemplar a verdade e esta verdade é uma verdade una. O tal to kalon referido na introdução que rejeita o que é sedimento como as unhas ou o cabelo. Mas apesar da operação asséptica a que Platão submeteu a República expulsando dela os poetas que apelavam ao sensível (aestesis) por oposição ao inteligível (noesis), houve sempre algo que sub-repticiamente fermentava. No século XVIII nasce a perspectiva do sujeito. Através dela o Belo não tem só um tipo, não é apenas Belo Ideal. Tem vários tipos, assim como o feio. O Belo Ideal Clássico era objectivo, independente do sujeito, proporcional, harmónico e simétrico. Mas surgia aqui a dissonância: um cisne por exemplo é belo, mas desproporcional com o pescoço muito comprido para o resto do corpo. Conclui-se então que pode então existir beleza no desproporcional, no desarmónico, no assimétrico. Pode existir beleza na excitação, na desordem, no exagero. Pode existir beleza nos anjos que são figuras antropomórficas com asas, ou no Minotauro (metade homem, metade touro). Pode existir beleza na sapa, segundo o sapo, como dizia Voltaire referindo-se à vaidade da espécie.[8] E neste sentido o feio é aceitável. Ele é aliás dialético do Belo pois o Belo está para o Bem e para a Felicidade, como o Feio está – e significa – Ferida. O Feio é a Ferida disfarçada de Belo.



[1] É talvez o autor com referências mais facilmente identificáveis: a morte (figura 12), a guerra (figura 13), a poluição (figura 14) o estado de emergência pós 11 de Setembro (figura 15)… 
















Fig. 12

















Fig. 13
















Fig. 14

















Fig. 15


[2] O ensaio (figura 17) recria um dos assuntos acima referidos: as instituições de saúde, neste caso, mental. O mesmo tema foi tratado por Steven Meisel em Julho de 2005 para a Vogue Itália (figura 18), e em Julho de 2007 também para a Vogue Itália (figura 19). 


















Fig. 17
















Fig. 18
















Fig. 19

[3] Espera-se que em 2014 a indústria de moda feminina valha 621 biliões de dólares enquanto a masculina não deverá ultrapassar os 402 biliões de dólares. Além disso os modelos masculinos auferem um décimo daquilo que recebem as modelos.
[4] Tanto num caso como no outro a iniciativa pode ser contraproducente. Em 1991 Toscani escolheu para uma campanha publicitária da Benetton a fotografia de um jovem doente de SIDA, moribundo a agonizar rodeado dos seus familiares. Naquela altura a SIDA era uma doença completamente estigmatizada e o uso da fotografia, e aparente desprezo pela dignidade do doente, a sua dor e a dor da sua família significou uma profunda quebra na confiança que os consumidores tinham na marca, bem como uma quebra nas vendas; ou seja, exactamente o contrário do que pretendia a campanha publicitária.
[5] Exemplo de Jeremy Scott que em 2013 apresentou uma coleção intitulada Arab Spring (Primavera Árabe).
[6]
[7]
[8] «Demandez à un crapaud ce que c’est que la beauté, le grand beau, le to kalon? Il vous répondra que c’est la femme avec deux gros yeux ronds, fortans de la petite tête, une guelle large & plate, un ventre jaune, un dos brun.»