quarta-feira, janeiro 30, 2013

jururu

terça-feira, janeiro 29, 2013

bem, façam figas

segunda-feira, janeiro 28, 2013

- original soundtrack -

adoro esta música















Quero ficar no teu corpo
Feito tatuagem
Que é pra te dar coragem
Prá seguir viagem
Quando a noite vem...

E também pra me perpetuar
Em tua escrava
Que você pega, esfrega
Nega, mas não lava...

Quero brincar no teu corpo
Feito bailarina
Que logo se alucina
Salta e te ilumina
Quando a noite vem...

E nos músculos exaustos
Do teu braço
Repousar frouxa, murcha
Farta, morta de cansaço...

Quero pesar feito cruz
Nas tuas costas
Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas
Quando a noite vem...

Quero ser a cicatriz
Risonha e corrosiva
Marcada a frio
Ferro e fogo
Em carne viva...

Corações de mãe, arpões
Sereias e serpentes
Que te rabiscam
O corpo todo
Mas não sentes...

(Tatuagem, interpretado por Elis Regina)
- não vai mais vinho para essa mesa -

assistir às apresentação de arte e cultura do renascimento pode ser como ir à ópera: a gente chora e ri ao mesmo tempo:
- "Brunelequi" em vez de "Brunelleschi"
- "paletes de emoções"
- "os artistas estavam subornados aos mecenas"
- "construída no sópé"
- "Dissecagem de corpos"
- "Estrai"
- Mecidis
- Masacci
- Verenose
- ars longa, vita brevis -
hipócrates

antes e depois ou "assim no céu como no céu. e porquê? a primeira imagem é do teto do mausoléu de santa Constança em Roma, enquanto a segunda é da cúpula de San Carlo alle quattro fontane de Borromini, cerca de 1000 anos depois. O mausoléu de santa constança é, como se pode ver, em planta centrada. essa questão dos edifícios de planta centrada interessa-me muito porque eles têm uma de duas origens: ou serviam de edifícios funerários (para comemorar a morte de um mártir ou de alguém ilustre; ou serviam de edifícios batismais. dou como exemplo do primeiro o mausoléu de santa constança ou de Gala Placídia em Ravena. enquanto edifícios batismais lembro-me do de São João Latrão, e não recordo nenhum outro agora. o círculo, o quadrado, o hexágono, a cruz grega... são formas arquétipas: são formas que convidam ao convívio, mas são também formas com um misticismo próprio: Parménides disse que o Ser era como uma esfera (nada se lhe podia retirar, nada lhe podia ser acrescentado), santo agostinho referiu a harmonia musical das esferas celestes, Palladio e Alberti defendiam a construção sobre planta centralizada. E assim é desde o início dos tempos. A Ocidente - que tinha herdado as basílicas romanas (destinadas em Roma para a prática da justiça, aquando a entrada em vigor do cristianismo como religião oficial do império, em 313 se não me engano) e que as tinha escolhido como locais de culto mudando apenas o eixo de entrada) não havia problema: continuavam a ser adoptadas as plantas basilicais mais ou menos complexas. A Oriente, em que o culto cristão era um pouco diferente (sacerdote e imperador participavam na cerimónia e depois de um cortejo entravam na igreja e beijavam-se no centro da mesma) esta forma também podia ser diferente. A Ocidente a planta centralizada implicava uma área interior aproveitável menor e isso faria com as pessoas umas em cima das outras não respeitassem as hierarquias. A Oriente o problema não se colocava. Bem isto então para dizer que no teto de santa constança podemos encontrar este padrão em mosaico que sugere a alternância de formas hexagonais, octogonais e cruciformes. 

Como dissemos (quer dizer, eu disse e vocês fizeram de conta que leram e eu agradeço-vos porque assim continuo a crer na ordem do universo), a Ocidente preferiam-se as plantas longitudinais. Mas tanto o Renascimento como o Barroco praticaram as plantas centradas por acreditarem no poder místico que as mesmas tinham, graças às relações matemáticas que com elas era possível estabelecer. À exceção do período da contra-reforma - em que com a formação de novas ordens religiosas e com as normas do concílio de trento se praticaram as plantas longitudinais de uma só nave com transepto inscrito ou sem transepto - estes foram tempos de dar asas à imaginação. Assim, Borromini - que não obstante ser um espírito soturno e ter mesmo chegado a suicidar-se tinha os projetos mais ousados no Barroco italiano (na  minha opinião) projeta esta San Carlo alle quattro fontane, uma igreja que ficava no cruzamento de quatro ruas, sendo que cada uma das esquinas tinha uma estátua. Borromini trabalhou ao nível interno a cúpula com caixotões, não quadrados como o Panteão que era modelo para tudo, mas hexagonais, octogonais e cruciformes! E agora que acabei (escrevi este post de uma vez, tenho de ir colocar as ideias em ordem, que as ideias em ordem são incompatíveis com o amor) vou para dentro que está frio. beijos e cafunés, rendinhas e coisas lindas














séc. IV
Roma (imagem retirada daqui. mas só imagem)



















Borromini
San Carlo alle quattro fontane
1646
Roma
- o carteiro -

Judite a decapitar Holofernes vs A cegueira de Sansão


A Judite e Holofernes de Caravaggio - executada provavelmente pouco antes de 1600 – foi uma das primeiras em que ele se aventurou a representar esta narrativa de forma desenvolvida. O tema da Judite foi sempre popular na arte italiana, mas Caravaggio escolheu representar a parte mais horrível da história da bela viúva judia, Judite, que juntamente com a aia entrou no campo do exército assírio que tinha sitiado a sua terra natal na Betúlia. Usando o seu charme[1], vestida para “seduzir os olhos dos homens” (Jdt 10: 4), e contando aos soldados de Holofernes uma pequena mentira, conquistou as atenções e confiança dos homens de Holofernes e dele próprio.[2] Holofernes convida Judite para jantar com ele na sua tenda com o propósito de seduzi-la. Ele próprio havia dito ao seu servo: “Para nós, seria uma vergonha deixar de lado uma mulher como ela, sem ter tido relações com ela. Se não a atrairmos, ela rir-se-á de nós” (Jdt 12: 12). De acordo com o livro de Judite, ela foi deixada na tenda com Holofernes enquanto este se encontrava deitado na cama devido ao excesso de vinho: para ele era servido vinho. Judite disse à sua serva que fi­casse fora do quarto e que obser­vasse o caminho de saída, como habi­tual­mente, já que teriam de sair as duas para rezar. Judite pediu a Deus forças para levar a cabo aquela missão, pegou na espada, avançou para a cabeceira da cama de Holofernes, agarrou-o pelos cabelos golpeou-o no pescoço duas vezes com toda a sua força e cortou-lhe a cabeça (Jdt 13: 2-8). Colocou então a cabeça num saco que a criada tinha e regressou triunfante com ela para Betúlia. Quando viram o corpo mutilado do general e a sua cabeça pendurada no ponto mais alto da cidade, os assírios levantaram o cerco e foram embora. 















Caravaggio
Judite a decapitar Holofernes
1598
Galleria Nazionale d'Arte Antica, Roma


Enquanto o tema de Caravaggio reflete sobre a ação heroica de uma mulher em nome da salvação do seu povo, no grande e ambicioso trabalho de Rembrandt, do mais intenso e experimental período da sua carreira (por volta de 1630) o que está em relevo é a fragilidade sexual da vítima feminina como cena central. O herói bíblico Sansão foi dotado por Deus com poderes sobrenaturais e força excecional. A sua paixão pela bela, mas perversa Dalila levou-o a afastar-se porém do caminho da virtude. Quando a audaciosa mulher descobriu o segredo da invencibilidade de Sansão, que estava no cabelo por cortar, contou-o aos filisteus a troco de dinheiro. Nessa noite “ela adormeceu Sansão so­bre os seus joelhos, chamou um ho­mem que lhe rapou as sete tranças da sua cabeleira; foi então que ele começou a ficar debilitado, e a sua força o abandonou. Ela disse-lhe: «Sansão, vêm con­tra ti os filisteus!» Ele despertou do sono e disse con­sigo mesmo: «Sair-me-ei bem como das outras vezes!» Mas igno­rava que o Senhor se havia retirado dele. Os filisteus amarraram-no, ar­ran­­ca­­ram-lhe os olhos e levaram-no a Gaza, ligado com uma dupla cadeia de bronze; meteram-no na pri­são e puseram-no a girar a mó.” (Jz 16: 18-21). O mais imediato, porém chocante, aspeto das duas obras está no gosto quase palpável do autor por esta representação da violência física. Tanto Caravaggio como Rembrandt enfatizam a dor do protagonista masculino reforçando a intensidade pelas formas diferentes em que eles mostram as reações dos perpetradores, dos que olham e das vítimas. Dentro da tradição artística italiana, a expressão destas emoções (conhecidas por affetti) está intimamente ligada ao estudo das figuras da vida. A impressionante representação de Caravaggio é encenada através dos espasmos mortais de Holofernes que, com os olhos abertos e boca num grito mudo, uiva contra o seu destino A cena é claramente destinada a perturbar o espectador através da atualidade dura e através da natureza estática da composição. Sem definir com precisão o espaço negro para além da boca de cena, Caravaggio posiciona as suas figuras perto do plano da pintura e o formato horizontal permite-lhe seguir o texto descrevendo a aproximação de Judite à cama de Holofernes. Depois congela a ação, fixando a narrativa no seu momento mais aterrorizador.[3] É com uma mistura de nojo e relutância que Judite dá a estocada final: o seu corpo inclina-se ligeiramente para trás como se ela estivesse a puxá-lo e ao mesmo tempo, a tentar não se sujar, não sujar a sua imaculada blusa branca enquadrada pelo corpete de onde despontam os seios, numa transparência muito mais sugestiva para a cena, do que por ventura, o nu. É que, se ela se nos mostra assim, neste momento em que corta a cabeça de Holofernes, tudo sugere que também surgiu com esta transparência ao general. Caravaggio pinta mesmo Holofernes de tronco nu quando o episódio diz apenas que Holofernes havia bebido demasiado e se encontrava reclinado na cama. A cortina vermelha e a velha aia (com ares de alcoviteira) dão-nos a ideia de estarmos dentro de um prostíbulo.[4] Além disso, o sangue do pescoço de Holofernes que cai para o lençol branco, contrasta com a pureza do mesmo e com a pureza do corpete de Judite que, poderá ter hipotecado o seu corpo para serventia do general, mas mantém uma integridade moral que nenhuma transparência coloca em causa. Caravaggio não pinta aqui Judite, obviamente, como uma virgem. Mas a verdade é que também não acentua a sua condição de viúva. Ela surge-nos – e perante Holofernes – como uma sedutora: sem qualquer pejo, mas com todo o enigma, o que a torna mais apetecível. O olhar impassível da aia cuja face enrugada e boca, possivelmente, desdentada, contrasta com a jovialidade da sua senhora e reforça o poder erótico que Caravaggio traz para a cena. O contraste acentuado entre os traços faciais é algo que Caravaggio explorou na sua carreira e pode estar relacionado com os escritos do seu contemporâneo e compatriota lombardo Gregorio Comanini que recomenda aos pintores que confrontem tipos contrastantes nas suas pinturas. Mas, mais do que os traços, é a presença da aia enquanto voyeur que contribui para a inquietação do observador.[5]




















Caravaggio
Judite a decapitar Holofernes (pormenor)




 Caravaggio
Judite a decapitar Holofernes (pormenor)

No Sansão de Rembrandt – que estabelece um paralelo com Holofernes – o tumulto caótico das figuras em queda domina a composição. No primeiro plano os filisteus subjugam o herói, atirando-o para o fundo e obrigando-o a lutar como um animal. A dor causada pela lesão no olho – mostrada com crueldade – é ainda expressada pela torção exagerada do seu corpo, a perna levantada e, acima de tudo, a forma como contrai o pé fazendo com que os seus dedos se curvem e que é a maior expressão da dor neste quadro. O realismo enérgico deste detalhe vai para além dos gestos do Holofernes de Caravaggio. Entre a massa dos que o atacam, o corpo de Sansão de bruços tem afinidades claras com uma gravura de Cornelis Cort (cópia de Ticiano). Os paralelos entre esta figura mitológica – que simboliza o tormento da paixão carnal, pela qual ele tem de ser punido – e Sansão – igualmente vítima da sua luxúria desenfreada – eram sem dúvida conhecidos de Rembrandt e dos seus contemporâneos. No Wtleggingh op den Metamorphosis, publicado em Haarlem em 1604, Karel van Mander escreve: “Others wish to proclaim with this great Tityus that no human power, however great, can prevail against divine justice without the transgressor being punished for the transgression”[6]. Ao emprestar a pose de Prometeu a Sansão, Rembrandt está também a fazer uso dos seus significados iconográficos e associações. Se de facto Rembrandt fez esta obra como presente para o seu protetor (o grande humanista e homem das letras Constantijn Huygens) como é aceite, seria compreensível que fizesse uma aplicação maior de associações literárias e visuais, do que em outras obras.[7]















Rembrandt
A cegueira de Sansão
1636
Städelsches Kunstinstitut, Frankfurt



Nas duas pinturas os artistas usaram a luz para enfatizar o drama inerente à atrocidade. Assim Caravaggio coloca as suas figuras contra um fundo sóbrio e iluminado por uma luz invisível e artificial que ilumina a partir do espaço exterior ao campo da pintura. O contraste forte de luz e sombra que define a musculatura do tronco de Holofernes evidencia os rostos de Judite e da sua criada, enquanto elas se concentram no ato sangrento, somado à atmosfera de profanação. À exceção das zonas brancas da cama e da blusa de Judite, as únicas cores fortes são o vermelho brilhante e escuro da cortina e de tom igual ao do sangue que jorra do pescoço de Holofernes. Ao confinar o espaço e focalizar a luz desta forma, Caravaggio engrossa a atmosfera para enfatizar o horror. Rembrandt no seu Sansão vai mais longe usando o contraste entre a luz de fundo à esquerda e o espaço negro no primeiro plano como uma metáfora para o destino de Sansão. O herói cai, figurativa e literariamente, da luz para as trevas nas quais ele deve viver cegamente doravante. A visão, que lhe permitiu ver Dalila, foi-lhe tirada para sempre. Tradicionalmente, tanto Judite como Dalila são consideradas exemplos da malícia feminina, simbolizando mulheres belas que originam a queda de homens poderosos através da astúcia e do engano. Ao contrário de Dalila no entanto, Judite é também incluída no panteão de heróis e heroínas do Antigo Testamento. A sua popularidade baseou-se no exemplo de mulher corajosa, casta e temente a Deus que, apesar de usar o seu charme para seduzir Holofernes, não partilhou a cama com ele. A sua energia e castidade (pudicitia) triunfam sobre a luxúria (libido) de Holofernes, algo que Caravaggio transmite subtilmente através da distância que Judite mantém da sua vítima.[8] Os seus braços estão esticados como que a expressar a repugnância e aquilo que ela se sente obrigada a fazer. Rembrandt por seu lado não nos deixa dúvidas quanto à infâmia de Dalila mostrando-a com tesouras na mão, a segurar as madeixas à luz e triunfante quanto à degradação dele.[9] Antes de Caravaggio não se conheciam representações do momento da decapitação nem na tradição italiana, nem na tradição flamenga. O que se conhecia era Judite triunfante com a cabeça do general na mão e acompanhada pela criada.













Rembrandt
A cegueira de Sansão (pormenor)


 O tema de Judite a degolar Holofernes prende-se com um outro também bíblico: o de Salomé a reclamar a cabeça de São João Batista que lhe foi apresentada numa bandeja. Um quadro de Francesco Maffei alerta-nos para esta ligação, já que nele se juntam os dois temas. Observamos assim que nessa pintura está representada uma mulher com uma espada na mão direita e uma bandeja com uma cabeça masculina, na esquerda. Se se tratar de Judite, não faz sentido a presença da bandeja pois Judite decapitou Holofernes, colocou a cabeça num saco e daí voltou para junto do seu povo. Por outro lado, se esta mulher for Salomé, a espada não tem razão de ser já que Salomé pediu a cabeça de São João Baptista numa bandeja, mas não o matou.[10]

Dentro dos seus contextos específicos do quadro de Caravaggio (Judite e Holofernes) e o de Rembrandt (A cegueira de Sansão) são ambos obras de grande inovação, focando sem precedentes, não apenas os atos de violência física, mas também implicando as suas consequências morais. Apesar de ambos os temas terem atrás de si uma longa tradição pictórica, o retrato do momento mais cruel foi quase sempre evitado. Isto acontece especialmente no caso de A cegueira de Sansão, onde a perfuração dos olhos do herói nunca tinha sido anteriormente retratada. O quadro de Caravaggio teve um efeito imediato e gozou de enorme popularidade, gerando muitas cópias, adaptações e versões entre os seus seguidores. A escolha de Rembrandt quanto ao momento da cegueira, por seu lado, permanece quase única. 


















Rembrandt
A cegueira de Sansão(pormenor)



[1] Judite fez aquilo que Ovídio dizia na sua Arte de Amar: “Lavou o seu corpo com água e ungiu-se com um óleo espesso e perfumado”; “penteou o cabelo”; “colocou uma tiara e vestiu as suas roupas de festa”; “Calçou sandálias nos pés, enfeitou-se com colares, pulseiras, anéis, brincos, e outros adornos” (Jd 10: 3-4) 
[2] Note-se que aqui as escrituras introduzem um ponto curioso: a beleza como forma de conquistar o mundo. (Jdt 10: 19) Primeiro ressaltam-lhe a beleza e só depois a sabedoria, como aparece por três vezes no capítulo 10, entre os versículos 20 a 23. 
[3] VVAA – Rembrandt Caravaggio. Amesterdão: Waanders Rijksmuseum, 2006, pág. 59 
[4] Em Jdt 15: 9 lê-se o seguinte, logo após Judite ter degolado Holofernes: “fez rebolar o corpo na cama, retirou o cortinado do dossel das colunas e, passados alguns momentos, saiu e entregou a cabeça de Holofernes à sua serva,”. Ora neste livro de Judite o cortinado não volta a aparecer, nem parece ter tido utilidade alguma para Judite transportar a cabeça. O mesmo não acontece no quadro de Caravaggio onde o cortinado tem papel fundamental. Mais uma vez nos socorremos da Sagrada Escritura: relativamente à cama de Holofernes é dito que estava “rodeada por um cortinado de dossel feito de púrpura, ouro, esmeraldas e pedras preciosas” (Jdt 10: 21). Caravaggio não pinta um cortinado púrpura, mas encarnado escuro, como se este cortinado tivesse eco no vinho de Holofernes. Ao pintá-lo desta cor, que não é declaradamente vermelho, nem se confundo com o fundo, Caravaggio deixa-nos indecisos entre afirmar que se trata do cenário normal para os aposentos de um general e dizer que se trata de uma decoração ousada e sugestiva. De qualquer forma, a ausência do cortinado criaria um vazio e um desequilíbrio naquela zona que Caravaggio procurou, obviamente, debelar. 
[5] Nas várias representações de Danae fecundada pela chuva de ouro, surge ao lado uma criada, algo que contribui ainda mais para a languidez da princesa. Exemplos: Ticiano, Artemisia Gentileschi, Tintoretto 
[6] Outros proclamam que, como Prometeu, nenhum poder humano, por maior que seja, pode prevalecer contra a justiça divina sem que o transgressor seja punido pela transgressão. VVAA – Rembrandt Caravaggio. Amesterdão: Waanders Rijksmuseum, 2006, pág. 60 
[7] VVAA – Rembrandt Caravaggio. Amesterdão: Waanders Rijksmuseum, 2006, pág. 60 
[8] VVAA – Rembrandt Caravaggio. Amesterdão: Waanders Rijksmuseum, 2006, pág. 61 
[9] Nas escrituras não é Judite que corta o cabelo de Sansão, nem é sequer cortada uma madeixa. É um homem que entra no local onde o herói se encontra a dormir e lhe rapa as sete tranças. (Jz 16: 19) 
[10] PANOFSKY, Erwin – Estudos de Iconologia. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, pág. 25
- o carteiro -

gostos discutem-se

pelo menos para mim. quando vejo o gosto dos jogadores de futebol, penso que de facto, "podes tirar a pessoa da pobreza, mas não tiras a pobreza da pessoa". uma pessoa com dinheiro e poder não é necessariamente uma pessoa bem formada, honesta, e com bom gosto. veja-se o Liberace ou o ronaldo. em relação à arte passa-se o mesmo. veja-se o Berardo e o parque do Bombarral. lembram-se daquela história do Hitler que foi recusado na academia de Belas-Artes (duas vezes)? Não sei se foi isso que fez dele um colecionador tão azeiteiro, mas há mais. Ao que parece o mercado da parolice já foi tomado pelos déspotas, ditadores e negociantes de droga todos.

O Hitler por exemplo, para além de ter organizado a Entartete Kunst - que, segundo a minha opinião era para alguns que o acompanhavam uma forma de ver boa arte (sim, porque os museus pilhados não foram só para as fogueiras nem para as exposições de arte degenerada. acho que muita coisa boa foi para usufruto pessoal de alguns colaboradores) - era um colecionador de Wolf Willrich e de Bocklin. Ainda que Bocklin seja um simbolista reputado, a Ilha dos Mortos, quadro preferido de Hitler é um mau Feng Shui. Remate à trave: vá lá, o pequeno homem gostava de Friedrich e de Speer. 
















Wolf Willrich
Family

O amigo Goering tinha melhor gosto: apreciava Botticelli, Rembrandt, Dürer e... tcharan: tinha um Picasso (olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço). Este caso e o de Goebbes são a prova que a arte degenerada e a sua exposição era na realidade apreciada por muitos, mesmo os membros do regime. Goebbels por exemplo deve ter tido de engolir alguns sapos para acompanhar o gosto particular do Führer. Teve de abandonar o apoio a Emil Nolde (era um colecionador das suas aguarelas) por Hitler considerava Nolde um degenerado, e "aprender" a gostar da estética de Conrad Hommel, Wilhelm Otto Pitthan, Arno Breker e Rudolf Zill. Lá foi construíndo a sua coleção baseado em nomes mais pacíficos como Rembrandt (um Rembrandt fica sempre bem na parede e não ofende) e Leo von Konig cujo atrevimento no traço deve ter escapado ao olho censório de Hitler.














Leo von Konig
Junger Dackel
1939


Ceausescu, que levou a cabo um "plano de austeridade" para liquidar a dívida nacional que previa a exportação de produtos e o racionamento do consumo interno que como consequência levou a enormes índices de má nutrição e mortalidade infantil, não se coibia porém dos seus iates e bons fatos (se eles soubessem o que custa mandar, toda a gente queria obedecer...). Ceausescu devia ser o tipo de homem que decorava a mesa com uma fruteira com frutos de plástico e decorava as paredes com últimas ceias em tapeçaria. A par desse blockbuster da pintura o ditador tinha também quadros de Constantin Artachino. Vá lá nem tudo estava perdido. Se eu fosse Deus levaria em linha de conta a sua preferência por gravuras de Goya. Fulgencio Battista pode não ter feito grande coisa por Cuba, mas ao longo da sua carreira política lá se foi abotoando com a aquisição de peças de autores cubanos como as coisas lindas de Armando Menocal, Mario Carreno (estou a vomitar) e Daniel Serra-Badue. Thank God o tipo também lhe dava na pintura de Rene Portocarrero e Amelia Pelaez. 















Daniel Serra-Badue
Rojo
1956
Art Museum of Americas


Reza Pahlavi foi o meu ditador preferido. Qual austeridade, qual promoção dos artistas nacionais... vamos ao que presta e "mai nada". Ele era Picasso, Warhol, Van Gogh, Monet, Renoir (embora, tenha de dizer que nem tudo de Renoir é bom. há mesmo coisas que, retirada a assinatura, passariam por sucedâneos do quadro do menino com a lágrima no olho), Degas, Duchamp, Chagall, Bacon. O rei Farouk do Egipto também não está mal. Pedir-lhe para não recolher vestígios arqueológicos de Amarna, por exemplo, seria como colocar a tigela de leite frente ao gato e dizer-lhe para não beber. Se o Napoleão pôde, ele também podia e foi isso que fez. Para além de colecionador Farouk devia ser também um bocadinho tarado: era vasta a sua coleção de arte erótica que incluía pintura, escultura, pornografia.

Mau Feng Shui devia ser o que se sentia em casa de Manuel Noriega: o ditador colecionava quadros gigantescos de Hitler e Kadaffi. Este por seu turno tinha em casa quadros do filho Saif Al-Islam (uma espécie de Dali, mas com tigres e o próprio pai). Saddam podia não gostar da América, mas gostava dos quadros da americana Rowena Morill (não acredito que vou postar um quadro da senhora. what a shame). A autora tinha vendido muitos dos quadros a colecionadores japoneses nos anos 80, mas ficou em estado de choque quando os viu na televisão, em casa de Saddam. Nem sei o que é pior: os quadros em si, ou estes estarem rodeados de plantas de plástico e decoração de gosto duvidoso. Imagino que só mesmo ele conseguisse viver ali.













Rowena Morill
The art of sorceress

Milosevic podia gostava dos Caprichos de Goya, principalmente os "Muchachos el Avio". Na sala de jantar, a imagem de dois ladrões andaluzes a prepararem-se para um dia de assaltos devia ser inspirador para abrir o apetite e pensar em genocídios. Mas mesmo importante, neste momento, é saber o que Bashar e a sua wanna-be Asma al-Assad gostam de apreciar enquanto pensam em bombardear o país. Ela, ocidental (uma prova que o gosto e a espinha dorsal não são moldados pelo local onde se nasce), decidiu abraçar a causa artística e quando eu digo abraçar, digo mesmo pegar em somas pornográficas e gastar em leilões para adquirir quadros de Nick Jeffrey. Um deles “Ornithop Callicore IV” que lembra Hirst. Mas mesmo Hirst deixou de ser o que era.
- não vai mais vinho para essa mesa -

gosto de escrever. gostaria de escrever bem, de escrever em extensão, de ser capaz de escrever uma coisa com mais de 50 páginas. uma coisa que fosse ficção. mas as personagens cansam-me. dá-me vontade de começar de novo. e assim tenho cinco primeiros capítulos de pseudo-livros. assumo que gostaria que fossem livros, mas perco o interesse. começo a achar que têm muitas palavras difíceis,  que as personagens não têm nada a dizer, que na verdade, e apesar da descrição, elas são ocas, que no fundo não há uma razão para aquilo e por fim, como é sempre o texto que me leva, não consigo controlar o rumo da história e lá se vai o que tinha em mente. hipoteco a história por mais um pormenor delicioso. mas que se lixe. um dia farei um livro com os primeiros capítulos dos pseudo-livros. será assim uma espécie de "Se numa noite de inverno um viajante". ninguém perceberá, mas toda a gente achará joycesco. mesmo eu que nunca consegui passar das primeiras dez páginas do Ulisses. mas nem tudo é mau: sou bem sucedida naquilo de pequeno e científico que escrevo (ou talvez esteja iludida...) e vou escrevendo aqui coisas pequenas, como agora. e só não escrevo isto maior porque a minha prosa aborrece-me tanto que até já estou a bocejar.



















William S. Burroughs














Ernest Hemingway



















Charles Bukowski e a mãozinha na bela nádega


















Paul Verlaine














Allen Ginsberg  

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terça-feira, janeiro 22, 2013

descida de peso

sábado, janeiro 19, 2013

- o carteiro -

hoje quando cheguei à caixa de correio vi lá este postal da ana. foi das coisas mais bonitas que já recebi. ainda por cima por correio! eu e a ana não éramos lá muito dadas no liceu. depois na faculdade a coisa também não melhorou, pelo menos no primeiro ano. mais tarde é que nos acertamos e hoje vamos tomar chá juntas e rir. também fazemos viagens de comboio e vamos a concertos. ou pelo menos falamos disso. vamos à feira comprar alfaces para ela, à sapataria para comprar sandálias para mim e foi ela que me deu o melhor conselho de sempre: "não deixes que façam de ti uma mascote cultural e faças o que fizeres, faz de tarde para teres transporte de volta". só ela é que me escreve e em nome das amizades, que são cada vez mais raras e descartáveis, deixo-lhe aqui o meu agradecimento.






























quarta-feira, janeiro 16, 2013

desligar a luz, deitar, ouvir o coração no colchão. virar para o outro lado e virar novamente até o cabelo ficar enrolado do pescoço. rolar até ao lado frio a cama, tentar dormir mas esquecer de fechar os olhos, insistir. tentar combater os porquês que aparecem sempre nesta altura. ao fim de uma hora, levantar e tomar um comprimido. desligar a luz, deitar, ouvir um cão lá fora, ouvir o coração bater no colchão, mais espaçado. rolar o corpo e a lágrima. noite patrocinada pelos princípios ativos do lexotan.

terça-feira, janeiro 15, 2013

desculpem não ter postado antes, mas eu às vezes tenho as minhas coisas
- original soundtrack -

caro antónio, muito obrigada pela sugestão. é perfeita
















Beat stress and rebalance your life
Make those dreams come true
Impress all your colleagues and friends
With the brand new you
So many lives condemned for no need
'Cause people don't buy the right magazine
Take a look in the mirror and see
Exactly how worthless you are

In a rut? Can't get out? Don't know why?
It's time to make that change
Cover up all the pain in your life
With our new product range
So please don't feel blue - let us show you how
To talk yourself into a good mood right now
Feeling sad is no longer allowed
No matter how worthless you are

And if your life depresses you
Just live it through your favorite movie star

Beat stress and rebalance your life
All you need to do
Is forget all the useless advice
And live your life for you
Don't let them sell you impossible dreams
Don't be a slave to the beauty regime
Look again in the mirror and see
Exactly how perfect you are

(The beauty regime, Divine Comedy)
- não vai mais vinho para essa mesa -

- olha estás a ver? esta aqui na televisão é bissexual.
- oh! toda a gente é bissexual!
- eu não sou!
- toda a gente é. toda a gente sente atração por pessoas do mesmo sexo. não há ninguém que seja absolutamente heterossexual. bem, vou deitar-me. dás-me um beijo? gostas de mim mãe linda, das mães mais lindas do mundo?
- muito.
- estás a ver como és bissexual!
- ars longa, vita brevis -
hipócrates

antes e depois ou "ora bem, ora bééééém. já tinha aqui feito um conjunto de posts sobre quadros do delacroix e do rembrandt de que o van gogh tinha feito uma atualização (aqui, aqui, aqui...). até houve um blog que fez referência a isto, mas entretanto perdi o fio à meada e esqueci-me de procurar mais. já sei que devia "tagar" os posts mas isso para mim é pimp my blog e eu gosto da coisa assim: rústica, com pelos nas pernas, do campo, a cheirar a binho, logo pela manhã... bem, não sei se vi primeiro o antes ou o depois, mas acho que vi primeiro o depois e disse para comigo: "X, isto não é coisa do Van Gogh. Se tem título de passagem bíblica, não é coisa dele." depois, e como andava a fazer uma investigação acerca do Rembrandt (sim, porque eu sou como o Artur Batista da Silva: o Met e o MoMA não sabem, mas eu sou voluntária nos dois!), achei que aquela expressão da personagem loira, com o braços levantados no momento fotográfico, era postável. e era postável em relação ao Van Gogh, ou vice versa. sou suspeita porque gosto do van gogh e não aprecio por aí além rembrandt...
estes quadros contam a história da morte e ressurreição de Lázaro de Betânia, irmão de Marta e Maria (sim, essas mesmo: da vida contemplativa e da vida ativa. a propósito, foi esta Maria que lavou os pés de jesus e os enxaguou com os cabelos. não foi uma prostituta qualquer!). eu acho esta história da ressurreição de Lázaro excelente. a sério, acho mesmo! Jesus curou paralíticos (São Tomás de Villanueva também), fez o cego ver e outras maravilhas. Mas santos houve a quem também foram atribuídos milagres. Ressuscitar porém... Jesus e Lázaro são os únicos, ao longo da história dos homens cristãos que ressuscitaram para a vida. O quadro de Rembrandt nem é muito grande, mas deverá fazer parte daquele conjunto de quadros que os artistas Flandres pintavam a retratar grandes cenas históricas, como se estas estivessem a acontecer no momento. Embora os temas religiosos não fossem os preferidos dos países protestantes,  artsias como Rembrandt pintaram-nos e os encomendadores, que não eram da Igreja, pediam-nos. As cenas religiosas podiam ser encomendadas pelas corporações das diferentes profissões como forma de estas mostrarem o seu altruísmo. A forma como estas cenas eram pintadas, isso sim era diferente. Um exemplo é a crucifixão de Brueghel, no Museu de Belas Artes em Budapeste que é feita de longe e com tanta gente que este não parece ser o tema principal. Ou então uma outra de Lucas Cranach, em Munique, que foi feita "de lado". Bem, mas o que me traz aqui é Rembrandt e Van Gogh. Rembrandt pinta a cena num local escuro, como se Lázaro estivesse a ressuscitar vindo das trevas. Toda a cena é marcada pelo espanto e por cerca de 5 personagens para além de Lázaro. Van Gogh reduz a cena a duas testemunhas e pinta-a de dia. Segundo João 11 o episódio deverá ter ocorrido algures in between. A de van Gogh parece-me mais genuína já que o regresso de uma pessoa para a vida deverá ser algo celebrado e isso nota-se mais nas cores vibrantes do quadro de Van Gogh. Mas prontos (como se costuma dizer). beijinhos e abraços:  


















Harmenszoon van Rijn Rembrandt
The Raising of Lazarus
c. 1630
Los Angeles County Museum of Art, Los Angeles












Van Gogh
The Raising of Lazarus
1890
Van Gogh Museum, Amesterdão
- o carteiro -

a primeira parte de um trabalho sobre as correspondências entre as pinturas de Caravaggio e Rembrandt


Poderá uma má pessoa ser um bom artista? Ou melhor, poderá um homem, tanto quanto se sabe, irascível, criar as mais criticáveis obras de arte do seu tempo, ao mesmo tempo que as dota de grande beleza, mesmo quando parece que estas são só ironia? Se a arte mais recente não nos tivesse dado o paradoxal Speer, teríamos sempre Caravaggio, e com ele as suas duas inspirações de São Mateus, obras que são esquecidas entre os folhos das senhoras de Boucher e as carnes lúbricas dos anjos de Rubens, mas que aqui merecerão, entre outras, especial atenção. 

O primeiro quadro da inspiração de São Mateus de Caravaggio já não se encontra entre nós. Dele apenas sobrou a imagem a preto e branco e aquilo que acreditamos de que ele era portador. A primeira versão de São Mateus e o anjo foi adquirida por Marchese Vincenzo Giustiniani, mas acabou em Berlim, destruída durante a Segunda Guerra Mundial. Esta versão foi encomendada para o local onde hoje se encontra a segunda, na capela Contarelli na Igreja de São Luís dos Franceses em Roma. O quadro continha o anjo que com uma indulgência gentil e paternal guia a mão do santo enquanto este escreve, naquilo que resulta, na nossa opinião, numa das mais bonitas – e irónicas – pinturas de sempre. A par dele, só Daumier uns séculos mais tarde. O que esta pintura contém de irónico e que contribuiu para que fosse recusada, é que coloca São Mateus como uma personagem velha, senil, talvez um analfabeto ou um mendigo. Atente-se nos pés grosseiros e unhas sujas que apresenta, na forma como quase não cabe na cadeira, os olhos muito abertos e a testa franzida como se não estivesse a perceber, a forma tosca como segura a pena (forma essa que o anjo tenta corrigir) e como a sua mão se parece ainda mais tosca quando em contraste com a delicadeza de gestos do anjo que até só utiliza uma das mãos. O quadro é extremamente teatral já que há uma gradação de planos colocando em evidência aquilo a que primeiro se deseja chamar a atenção: embora o nosso olhar atraído pela luz nos diga que é o centro, a verdade é que em primeiro plano encontra-se o pé do santo, grosseiro e com as unhas negras em direção ao exterior. Também teatral (algo que sempre acontece nos quadros de Caravaggio), é a forma como as personagens são colocadas na boca de cena, através do uso do contraste forte entre o que é importante e o fundo. Notamos também isto na Deposição do corpo de Cristo do mesmo autor, por exemplo. 

O olho do patrono não era de forma nenhuma o nosso olho. Lembremo-nos que quem via e ajuizava os quadros de Caravaggio vivia sob a influência da Contra-Reforma, sempre alerta para pormenores indecorosos. Se a imagem era para ser colocada junto ao altar e por isso, junto ao sacrário onde o corpo de Cristo é guardado, era escandaloso que o santo estivesse descalço e sujo tão perto do sacrário. Também não era apropriado que o anjo tivesse uma relação tão física com o santo, já que supostamente apenas o inspirou; não teve de ajudá-lo a escrever. Acresce-se a isto a sensualidade do anjo, com os lábios entreabertos e as vestes quase transparentes a relevar pormenores do corpo, inapropriados para a atmosfera sagrada a que pertencia. 


















Caravaggio
São Mateus e o Anjo
1602
Kaiser-Friedrich-Museum, Berlim











Caravaggio
São Mateus e o Anjo (pormenor)














Caravaggio
São Mateus e o Anjo (pormenor)


Quando foi pintado em 1602 o quadro causou grande escândalo. Caravaggio que frequentemente retratava a elite bíblica tendo como modelos os pobres de Roma e as suas prostitutas, foi desta vez demasiado longe segundo o seu patrono, o cardeal Matteo Contarelli[1]. Contarelli encomendou ao pintor três obras acerca de vida de São Mateus, obras essas que deviam figurar na capela da igreja de São Luís dos Franceses. Quando Caravaggio entregou a sua versão do episódio em que São Mateus, inspirado pelo anjo, escreve o Evangelho, Contarelli ficou horrorizado: como vimos, em vez de mostrar o evangelista como um dos escolhidos, representou-o como um ignorante, um mendigo, descalço e trapalhão, a quem o anjo tem de, mais do que inspirar, guiar ou mesmo ensinar a escrever, tal como um adulto faz com uma criança. O quadro está pleno de significado teológico já que mostra a insignificância das capacidades mentais humanas em comparação com os seres divinos. Mas isso não convenceu o mecenas que pretendia que esta encomenda fosse um meio para a sua glorificação como patrono. Para o autor, este foi apenas um de muitos quadros recusados, embora diga-se, em abono da verdade, que Caravaggio conseguiu superar-se na segunda versão do tema. 

Mesmo assim, crê-se que Caravaggio terá feito muitas cedências à Reforma Católica de forma a satisfazer a Igreja em detrimento de uma atitude mais rebelde. Uma dessas cedências terá sido a de representar São Mateus a escrever em hebreu em vez do típico latim ou grego, já que o hebreu foi a língua original em que o evangelho foi escrito. Desta forma Caravaggio deu voz aos desejos da Igreja de se purificar e rejuvenescer. O Evangelho de São Mateus tinha uma posição privilegiada no cânone cristão, já que se acreditava ter sido o primeiro texto cristão. A tradição diz que São Mateus escreveu o texto com a sua mão e em hebreu[2]. São Jerónimo foi a grande autoridade nesta matéria. Segundo ele: “The first evangelist is Matthew, the publican, who was surnamed Levi. He published his Gospel in Judea in the Hebrew language, chiefly for the sake of Jewish believers in Christ, who adhered in vain to the shadow of the law, although the substance of the gospel had come”[3] 

Quando Caravaggio pinta este quadro, que deveria estar pronto a tempo do Pentecostes (festividade cristã em que o Espírito Santo desce sobre os discípulos de Cristo sob a forma de línguas de fogo). Coloca assim as línguas de fogo como uma antítese da queda das línguas (leia-se, linguagem) que ocorreu com a Torre de Babel. A unificação do conhecimento através do hebreu e a concentração do mesmo nos discípulos marca a universalização da missão cristã. A questão da aplicação do hebreu não é por isso despicienda.[4] 

A segunda versão do tema é uma belíssima revisitação do mesmo, sem que esteja no entanto arredada a ironia típica dos quadros de Caravaggio. Neste quadro vemos uma disposição completamente diferente. A cena desenrola-se de cima para baixo, num sentido vertical que começa com o anjo envolto em formas curvas e dinâmicas a enumerar aspetos a São Mateus. Vemo-lo através da forma como o pintor retratou os dedos do anjo. São Mateus em baixo, volta-se na direção do anjo, numa torção de corpo que nos parece difícil para um homem que aparenta ser bastante idoso. Já não temos aqui o anjo como um professor para São Mateus, mas antes como alguém que relembra. É óbvio que também não o vemos como uma entidade que inspira São Mateus, como de facto deveria ser segundo os cânones. No entanto, Caravaggio “domesticado” continua a ser igualmente curioso. Vejamos que o autor insiste no pé e numa certa periclitância no que se refere à adoção do que é normal e vigente. Se antes apresentou São Mateus com os pés sujos e como uma criança, aqui reforça o papel dos pés e a ideia de um evangelista de certa forma incapaz. Note-se que São Mateus se encontra de pé, com uma das pernas apoiadas num banco que por sua vez, em primeiro plano, está algo instável: parece que a todo o momento, quando São Mateus se orientar mais para o anjo, o banco vai cair e o evangelista estatelar-se no chão, já não dentro do quadro, mas cá fora, como que num palco e nesse caso, já na plateia. Esta posição do corpo e a forma como se apoia no banco, é típica de uma criança irrequieta, razão pela qual, na nossa opinião, Caravaggio apenas suavizou a sua visão inicial da cena, permanecendo nela a mesma potencial provocação. 

Caravaggio
A inspiração de São Mateus
1602
Capela Contarelli, São Luís dos Franceses, Roma




Caravaggio
A inspiração de São Mateus (pormenor)


Caravaggio
A inspiração de São Mateus (pormenor)

A visão de Rembrandt relativamente ao tema é marcada pela época e pelo espaço, sendo que o Protestantismo e as determinações da Reforma estão presentes nas suas obras. A Holanda do século XVII era uma rica mistura de denominações religiosas: Calvinistas da Igreja reformada, Anabatistas, Luteranos, Católicos, Quakers e Judeus. Quase todos os aspetos da direção, disciplina e doutrina da Igreja estavam sujeitos a intensa argumentação dentro desta sociedade plural. A religião oficial era o Calvinismo, que acabou por confiscar todas a igrejas católicas entre 1578-1579 e despojá-las de objetos religiosos como pinturas, esculturas, altares, de acordo com as prescrições calvinistas quanto à imagética religiosa. Os calvinistas proibiam estritamente o uso de imagens em igrejas, mas os membros da igreja reformada nada poderiam aventar quanto ao colecionismo de pinturas religiosas. É neste cenário que a pintura de Rembrandt se desenvolve. Não era um calvinista – tanto pai como mãe também não o eram – mas vivia numa geografia que dava algum espaço a outras religiões e estava inserido numa sociedade cuja religião era aberta a todos os membros. O São Mateus e o anjo de Rembrandt é diferente do de Caravaggio não só em toda a composição, mas também porque os separam ideologias próprias e bem diferenciadas. Digamos que as religiões (Catolicismo e Protestantismo) levantam problemas que nenhum dos dois levantou, pois Rembrandt embora não tenha, segundo se pensa, visto nenhuma obra de Caravaggio, conhecia os que no seu encalço haviam retratado a luz através da sombra. Rembrandt fez isso mesmo. No referido quadro, Rembrandt retrata o espírito em que a voz do anjo chega até São Mateus: “murmúrio de uma brisa suave” (I Rs 19: 12). Chegam assim ao evangelista as palavras do Senhor enquanto ele escreve em isolamento contemplativo. São Mateus coloca a mão no pescoço enquanto recebe a voz espiritual que prega as palavras que ele ouve. Como outros apóstolos e santos nos quadros de Rembrandt, São Mateus recebe humildemente a iluminação divina em obediência completa e fé incondicional.[5] 

Rembrandt
São Mateus e o Anjo
1661
Museu do Louvre, Paris



[1] Em 1565 Monsenhor Matteo Contarelli adquiriu uma capela na igreja de São Luís dos Franceses em Roma, mas quando morreu, cerca de 20 anos mais tarde, a mesma ainda não tinha sido decorada. Virgilio Crescenzi e o seu filho Giacomo levaram a cabo essa tarefa que se pautava pela realização de uma escultura de São Mateus e o Anjo, comissionada, primeiro, por Gerolamo Muziano e depois pelo escultor flamengo Cobaert, e um fresco para d’Arpino. Este último de facto concebeu as abóbadas, mas só quando em 1599 Caravaggio acordou em pintar as paredes é que a decoração da capela assistiu ao seu auge. Acontece que a escultura de Cobaert não suscitou o interesse dos seus mecenas, e assim foi Caravaggio quem ficou responsável pela decoração do espaço, trabalho esse que deveria estar concluído no dia 23 de Maio, dia de Pentecostes. 

[2] O evangelho fala da genealogia de Cristo desde David e Abraão, marcando assim uma transição entre o Antigo e o Novo Testamentos. 
[3] KEARNY, James – Imagining the book. Pennsylvania: Pennsylvania Press, 2009, pág. 44 
[4] No meio do tumulto da Reforma e da Contra-Reforma o bispo católico de Brieu declarou ter descoberto um manuscrito do Evangelho de São Mateus em hebreu, isto enquanto viajava pela Itália, enquanto pouco antes havia sido um hebraísta protestante (Sebastian Muenster) a dizer ter descoberto, numa comunidade judaica, um manuscrito incompleto do Evangelho de São Mateus. O “Mateus protestante” e o “Mateus Católico” eram, obviamente, textos díspares. KEARNY, James – Imagining the book. Pennsylvania: Pennsylvania Press, 2009, pág. 47 
[5] PERLOVE, Shelley; SILVER, Larry – Rembrandt’s faith: Church and temple in the dutch golden age. Pennsylvania: Pennsylvania State University Press, 2009, pág. 354
- o carteiro -



















Van Gogh
Fifteen sunflowers in a vase
1888
National Gallery, Londres


ontem após tomar banho, limpei-me a uma toalha que cheirava a leite de vaca. cheirava aos dias em que eu ia para casa da minha avó do campo. porque eu tinha uma avó no campo e outra na cidade. a do campo tinha porcos, galinhas coelhos, vacas e um cão que se chamava King, mas que lá em casa toda a gente chamava de "kingui". a minha avó era padeira e todos os dias de manhã ia levar o pão às pessoas da rua, a horas que para mim eram imagináveis. lembro-me de ir com ela para a terra, apanhar batatas: ela colocava uma toalha de mesa no chão, punha-me um chapéu na cabeça (daqueles com lenço, tal como ela) e deixava-me um pão com queijo e marmelada e uma garrafinha de sucol. eu ficava na sombra uma tarde inteira, a cavar como ela, mas só apanhava minhocas que me faziam arrepiar toda. às vezes lá apanhava uma batata, mas sachava-a a meio e penso que a minha avó não as vendia sachadas. lembro-me de comer sopa grossa e o chamado "condoito" (escreve-se conduto, mas a minha avó dizia "condoito"). o "condoito" era o segundo prato pautado, na maior parte das vezes, por carne, batatas e massa, tudo guisado. comia-se à colher. lembro-me que não havia banheira, nem lavatório, nem sanita. a sanita era um triângulo de cimento que o meu avô carpinteiro tapou com um balcão em madeira, com um buraco a meio. a sanita ficava ao lado do aido dos porcos, o que era bom porque os cheiros misturavam-se e assim a culpa podia ser sempre dos porcos. o quarto da sanita não tinha luz, mas quando o sol batia era possível ver aranhas com pêlos e moscas presas nas teias. lembro-me de ir com ela e com as vacas à ordenha, uns dez minutos pelas ruas a fugir dos poucos carros. a minha avó dizia "arruma preta, afasta mimosa". era um nome previsível, "mimosa". mas a minha avó gostava e era escusado porque para ela os gatos eram pantufa ou malhadinho. qualquer coisa que acabasse num diminutivo. quando chegávamos à ordenha as vacas eram lavadas nas zonas das vergonhas que eram todas muito próximas, sendo portanto possível que uma vaca que estivesse a dar leite fizesse as suas necessidades fisiológicas ao mesmo tempo, o que me enojava um bocado. mas a verdade seja dita: cheirava ali mais a leite do que a cócó. o leite era espesso, e ainda vinha morno. às vezes, quando as vacas davam mais leite pela manhã, a minha avó trazia-me um canado com um bocadinho de leite e eu bebia. claro. não havia nada naquela casa: não havia água canalizada, não havia água quente, não havia gás. o fogão era a lenha e a água para lavar a louça ou para regar era do rio. para cozinhar era do poço. por isso se dizia "vou buscar água para acender o lume", o que me parecia uma contradição. lembro-me que a vasilha onde a minha avó trazia a água acartada à cabeça era azul. o tempo era passado na cozinha velha, muito baixa e negra por causa do lume que estava sempre acesso com os gatos ali por perto, de pontas das orelhas roídas pelas brasas de uma panela tripé. a minha avó cozinhava na cozinha velha, comia na cozinha velha, via televisão na sala de baixo e dormia em baixo, tudo porque a sala de cima era para qualquer coisa de muito especial que nunca veio. as únicas vezes que aquela sala foi utilizada foi para casar os filhos nas fotografias, beijar o Senhor no Domingo de Páscoa e velar o corpo do meu avô que morreu sem as duas pernas. 
- o carteiro -

[1]
coisas atuais como a capa da Time em Junho de 1968 ou a Punch de 1906
[2]
coisas inúteis como o depois e o antes da Harper's Bazaar
[3]
coisas que vale a pena ver (acho eu)
[4]
coisas que uma pessoa aprende: a "ordem de Brunelleschi" na nave central da basílica de São Lourenço, Florença