segunda-feira, janeiro 23, 2012

- o carteiro -

Van Gogh
Fifteen sunflowers in a vase
1888
National Gallery, Londres

quando a minha idade era outra que não esta, as escolas primárias da cidade programaram em conjunto os festejos do dia mundial da criança. cada turma tinha de aprender uma canção que tinha como mote uma letra. ficámos com a canção do "d". não me perguntem a idade que eu tinha, o ano em que isto aconteceu, ou a logística da coisa. só sei que tinha de cantar a canção do "d", e se possível sem papel. ensaiámos arduamente (eu pelo menos) para saber a canção na ponta da língua. no dia, após um desfile pelas ruas da cidade, com uns chapéus à chinês feitos com cartolina, fomos todos colocados dentro da praça de touros. sem touros. ali várias turmas cantaram as suas músicas até chegar a vez da canção do "d". não me lembro se tínhamos de cantar as músicas por ordem alfabética. quando chegou à nossa vez, à vez da turma da dona Alcina, a coisa lá saiu:

"doíam os dentes ao demónio
há dez dias que não descansava
desceu ao dentista
e fez um grande pandemónio
dançou de medo e desespero

o demónio indicou o dente com o dedo
desatou a dizer as desgraças dele
..."

e por aí em diante. não me lembro do resto nem me lembro se acabava com o demónio desdentado ou com placa. gostei de saber, desde essa altura que o demónio tinha dores de dentes e que tinha desgraças para contar (quatro alminhas que se salvaram, uma tentação frustrada, oh opróbrio...). depois, depois veio o rui veloso e a miudagem passou-se. também não me lembro se tocou muitas músicas, mas acho que não. hoje penso que o rui veloso foi lá porque estava perto e não lhe custava nada. acho que tocou as músicas mais conhecidas, incluindo o chico fininho cujo disco tínhamos lá em casa. eu não sabia colocar os discos a tocar e por isso quase sempre os ouvia na rotação errada. lembro-me de ter dançado o chico fininho como de fosse charleston e vim embora. lembro-me de me ter sentido muito feliz. quando cheguei a casa fui ver a Rua Sésamo em espanhol, a preto e branco (alguém lá na rua tinha parabólica, uma inovação!). para ligar a televisão tinha de subir a uma cadeira e a um móvel. uma vez bati com a cara no móvel e lá se foi um dente que estava a abanar. enquanto via a Rua Sésamo, comi pão com manteiga e marmelada e tomei leite da garrafa termos, que a minha mãe tinha deixado preparado desde manhã. acho que a minha avó passou por lá, a caminho da praia, para eu lhe desapertar os milhares de colchetes da cinta e ela poder vestir o fato de banho que mais parecia uma armadura, principalmente nas mamocas. a minha avó tinha mamoca para dar e vender. se eu soubesse o que sei hoje, tinha comprado... depois a minha avó foi para a praia, ali a dois quarteirões para apanhar sol nos ossos, mas não nas varizes. eu não temia a velhice. a velhice era como um daqueles daqueles comboios em que de vez em quando alguém ficava debaixo. como era possível ficar debaixo de um comboio? a gente ouve o comboio a chegar e se não ouve, é porque ele ainda vem longe. a velhice era como um comboio que eu não ouvia chegar. era impossível ficar debaixo da velhice. hoje o que me perturba é saber que isto não é o ensaio geral para a vida.

2 Comments:

Blogger alma said...

Fantástica dissertação ...
uma Beluga proustiniana

27/1/12 9:39 da tarde  
Blogger Belogue said...

a minha avó e aquela cinta/espartilho... aquilo era feito por medida porque a minha avó tinha um peito tão grande que tinha espaço para guardar lá o porta moedas. quando me dava uma moeda para comprar um gelado vinha sempre quente. a moeda. e eu às vezes até tinha medo que ela me apertasse muito quando lhe dava um beijo porque achava que o peito enfunado da cinta me ia magoar.
coitada, agora a minha avó acaba-se numa cama.

27/1/12 11:48 da tarde  

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