quinta-feira, junho 24, 2010

- o carteiro -



Foi uma leitura longa e, como dizer isto… desconcertante? “Desconcertante” é o termo que se usa quando não se sabe que termo usar. O livro é de facto excepcional, não sei se o “melhor da década”, como o classificaram, mas entusiasmante, com uma escrita fluida e permanentemente triste, bem contextualizada pelo desertos e paisagens espirituais e físicas áridas típicas do México, bem como pela modorra que atinge as personagens e as impede de resolver os crimes de Sonora. Está dividido em cinco partes que se ligam através dos crimes cometidos nessa cidade imaginária que se reporta ao que de facto aconteceu em Cuidad Juaréz: cerca de 500 mulheres foram assassinadas com violência nos últimos 15 anos, sem que a polícia ou o governo tenham conseguido deter ou encontrar (ou tenham mesmo mostrado vontade para tal), o(s) culpado(s).

Como disse, a história está dividida em cinco partes: a primeira conta-a sob o ponto de vista de quatro professores universitários que partilham o gosto pela escrita de Archimboldi, um escritor pouco visto, pouco lido, mas permanentemente na calha para receber o Nobel da Literatura. Com vontade de seguir os passos a Archimboldi que nunca ninguém ou apenas uma ou duas pessoas viram, os professores seguem até ao México pois possuíam pistas de que Almafitano estava ou havia estado naquela terra inóspita. Caem também eles no torpor dos dias quentes e no tédio que é a ausência de divertimento. Lá ouvem falar dos assassinatos de Sonora e chegam à fala com Almafitano, também professor a quem é dedicada a segunda parte do livro. Quando o conhecemos, Almafitano encontra-se entre o fastio daquilo que já não lhe interessa, a educação da sua filha e a obsessão com as palavras numa clara alusão de Bolano à literatura. O livro está aliás repleto de referências a Borges, mas também (na última parte principalmente) aos grandes escritores sul-americanos. A cidade imaginada por Bolano é como a cidade de Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Marquez. Almafitano descura Rosa, fixado que está na possibilidade de o vento operar num tratado de geometria que o próprio pendurou numa das cordas para a roupa, a função de leitor, virando e revirando as páginas ao seu sabor. Esta “acção artística” foi baseada numa outra de Marcel Duchamp. Esta parte é pautada pela incursão de Almafitano por um universo paralelo ao dele, muito provavelmente relacionado com os crimes e pela presença de uma carrinha referida várias vezes e que surge mais tarde na parte dedicada aos crimes. Segue-se a parte de Fate (que dá vida a um jornalista que Bolano realmente conheceu). A parte dos crimes é de uma descrição que causa vergonha pois embora não queiramos admitir, o que nos faz lê-la com tanta avidez é a necessidade de penetrar naquela miséria, “Twin Peanesca” É o nosso pezinho a fugir para o mórbido, dentro de um livro, sujeito às criações de cada leitor, em vez do tradicional desastre de estrada de Sábado à tarde. Por fim, na parte de Archimboldi chegamos ao momento da quase conclusão, uma vez que apesar das diversas pontas caçadas, muitas outras continuam por caçar. E após um capítulo tão intenso como o da descrição dos crimes, é de uma grande ingenuidade pensar que o leitor não vai querer desvendá-los mesmo que na última página e que feliz se vai render apenas ao génio da obra.

Esta forma circular ou como que a lembrar os filmes em mosaico, não é nova, mas a riqueza com que Bolano o fez, lembrou-me de imediato a transpiração que me afecta (em sentido figurado, claro) quando estou perante uma folha em branco. Bolano escreve com uma fluidez e sem artifícios sentimentais, sem poesias de puxar à sensibilidade que faria qualquer escritor de hoje corar. Tem a capacidade de enlaçar não só a grande narrativa como as pequenas desenvolvidas em cada uma das partes de forma a deixar-nos agarrados ao livro. O pensamento não viaja quando lemos 2666 porque a descrição é feita sem artimanhas de tal forma que a nossa mente é literalmente guiada por Bolano (com as devidas diferenças criativas de cada um, claro está); parece que não a controlamos e nem mesmo esta expressão me parece digna de mim quando a escrevo após a leitura de Bolano. A escrita com “rodriguinhos” não é para ele e nem ele provavelmente a quereria. Só há três críticas, uma maior que outra e outra que não é ao livro, que tenho de fazer porque… sim. A história tem um final aberto o que é contraditório até com o carácter circular da escrita e da organização das partes. Ainda que se argumente que a obra fechada é romântica e muito hollywoodesca, é muito frustrante para o leitor não a ver. A bem da verdade, na vida também a história dos crimes de mulheres não teve conclusão e na nossa vida, no dia-a-dia muitas pontas permanecem soltas. Mas para isso é que temos a literatura. Ainda para mais após a parte tão exaustiva e perturbante dedicada aos assassínios, o leitor merecia um final ou um vislumbre de final. A outra crítica prende-se com quantidade de personagens com grande espessura que ficam pelo caminho. Almafitano é abandonado na sua loucura, os três catedráticos e a professora espalham-se pelas suas cidades de origem, Fate desaparece e com estes, que são os principais, desaparecem muitos mais. Por fim, dizer que muitas vezes é-nos imposta a concordância com os críticos. Ao pesquisar acerca do livro na internet deparei-me com blogs e com notícias que estupidificam e esconjuram com o fantasma da idiotice aqueles que não gostaram ou até os que não leram 2666. Para esta crítica concordar com a excelência da obra é uma obrigação, o que me irrita. A crítica deve parar quando começa a dar-se ares de insulto com sobranceria.