quarta-feira, março 24, 2010

- o carteiro -

Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a Vase
1888
National Gallery, London

Quando a minha idade era outra que não esta, uma questão mantinha o meu pensamento em constante sobressalto: a impossibilidade das relações amorosas. O que era a “faísca”? O sexo, o amor, a pornografia, o visceralismo e a ginecologia eram a mesma coisa? Era possível gostar de duas pessoas ao mesmo tempo de formas iguais? Havia formas mais nobres de gostar do que outras? Havia algum código de conduta? Como é que se seduzia alguém? O sexo era um fim ou um meio? Namorar era um substantivo ou um verbo? Como é que se namorava? Namorar. As pessoas pareciam-me movidas mais pelas circunstâncias do que por elas. Tocavam-se na rua, davam as mãos, olhavam bem uma para a outra. Para quê? O que é que isso significava? Teria eu alguma coisa no meio dos dentes? Procurava não olhar nos olhos e parecia-me mais lógico que um homem me batesse porque não estava a proceder conforme o determinado pelo grande livro das relações (que se não existe, devia existir), do que beijar, dar a mão ou olhar. O que queria dizer dar a mão? Eu sentia como uma mentira os ditos e os feitos. Como poderia um homem dizer que gostava de mim? Quais os mecanismos que nele operavam essa "sensação de sentimento"? Só podia ser um mau homem, uma pessoa não potável para dizer uma coisa tão insultuosa à minha inteligência. E se gostava – sentimento que ele naturalmente confundia com um outro – era porque eu tinha feito alguma coisa de errado. E se não tinha feito, ía fazer. Não que eu quisesse violência ou as restantes tendências, mas era tão mais fácil ser violenta, descarada e fria do que ser normal. A normal era uma folha em branco. Era ridículo procrastinar a incorruptibilidade do meu corpo pois a minha mente, repleta de confusão entre aquilo que eu era e aquilo que os outros viam em mim (incluindo o ginecologista), já me tinha corrompido há muito. Não que pensasse muito em sexo. Eu nem sequer sabia se devíamos dizer “ter sexo” ou “fazer sexo”. O “ter” era mais simpático, o “fazer” mais verdadeiro. Pensava muito no quão atrasada estava face aos outros; face às piadas, face aos livros, aos filmes, à família, às estatísticas e ao ginecologista que olhava para dentro de mim com olhar trocista. Pensava no ridículo que seria encarar alguém e dizer-lhe a verdade. Pensava nas velhas de Goya onde mulheres com seios caídos se insinuam a rapazes. Pensava n' A Pianista no chão, de camisa de noite quando ele lhe disse que não adiantava ela e o seu corpo ridículo tentarem aproximar-se dele. Tal e qual. Pensava no terror de baixar a guarda. Aliás… O que era "baixar a guarda" para quem nunca se tinha apaixonado e ao primeiro sinal de tal bateu em retirada porque não conseguia dissecar o que sentia? (tanta linguagem bélica!). E estava tão certa que do outro lado não estava ninguém ao mesmo nível que preferi chorar durante três anos em todos os compartimentos de comboio, em todas as repartições públicas e fazer cerca de 2 conjuntivites por ano do que voltar atrás e pedinchar atenção, mesmo que fosse daquela atenção pela qual uma mulher já pode pagar.
Assexuada, incapaz de suscitar num homem um interesse mínimo. Desajeitada, risível, triste na minha inviolabilidade, feia, geneticamente errada, um resquício pós-apocalítico de um vómito mal parido. Beleza interior, dizem.
“Eu queria ser mulher para excitar quem me olhasse,
Eu queria ser mulher pra me poder recusar…” (Mário de Sá-Carneiro)

9 Comments:

Blogger João Barbosa said...

... tanta raiva e tanta tristeza ... xô! bicho ruim... xô!

24/3/10 10:46 da manhã  
Blogger alma said...

ó Beluga :)
resposta ao seu questionário:
-Faísca é o melhor estilista português !
ou é fogo que arde sem se ver !
-sexo...e ginecologia vai tudo dar ao mesmo.
- é possivel gostar de duas ou mais pessoas ao mesmo tempo.
- Há
- Há
- seduz-se com arte
- é o meio para chegar ao fim
- namorar é o verbo
- com prazer
- significa uma procura
- contacto
- confiança
- ter e fazer dois bons verbos
- se bateu em retirada menos um problema
- chorar faz bem lava a alma
- beleza interior a única
- pode sempre recusar

25/3/10 12:18 da manhã  
Blogger Belogue said...

Caro João Barbosa:
Também acho!

Cara Alma:
Não totalmente satisfeita coloco-lhe mais algumas dúvidas:
- Se há um código de conduta, onde aprender? Com a prática?
- Pode-se fugir à prática e ser igualmente gentil e bom para a Humanidade?
- Seria muito errado da minha parte apagar este post?

26/3/10 12:43 da manhã  
Blogger alma said...

Não se ria
reza a história que Cristo veio ao mundo para nos demonstrar o dificíl que é ser homem...
para nós mulheres resta-nos os exemplos da maria madalena ana karenina madame bovary (smile)

se apagar é porque estava escrito lá em cima ()

no fim da história de cada um de nós há a redenção (tipo w.Disney)

a Beluga é brilhante :)

26/3/10 1:04 da manhã  
Blogger Belogue said...

Não, não me rio. Durante tempos acreditei que devia ser como o Messias e depois percebi que seria melhor encontrar um meio termo entre o Messias e a Messalina (aquela que era fresca para assar!). O pior é esse meio termo: é um medo constante de me exceder, de deixar de me reconhecer...

Quando li que escreveu "se apagar é porque estava escrito lá em cima" lembrei-me logo do Jacques do Diderot. Foi propositado ou "há coincidências"?

27/3/10 12:31 da manhã  
Blogger alma said...

Beluga,
não sou tão criativa :)
foi propositado depois de o lermos é frase que não se esquece...!

estou a ler "almas mortas" do Gógol
neste caso é pura co-incidência

27/3/10 11:22 da tarde  
Blogger alma said...

by the way
antes por excesso* que por defeito LOL

*não há que ter medo ...

28/3/10 12:02 da manhã  
Blogger Belogue said...

Cara Alma:
Deixe estar, o Diderot também não escreveu - na minha opinião. um grande livro. Estou a ler o 2666. Fiquei de "pé atrás" porque toda a gente estava a falar maravilhas do livro, mas para falar a verdade, do 1/9 de livro que li, está a ser muito bom. Uma escrita simples, directa e bem cadenciada. E uma história com um bocadinho de surrealismo sul americano, mas sem excessos. Já os russos dão-me frio (a sério, fico com arrepios quando leio russos).

"Antes por excesso" e "aproveita" é o que me dizem, mas o medo é mais forte do que eu. Por enquanto.

29/3/10 12:24 da manhã  
Blogger alma said...

nada de arrepios
nada de medos
não seja tão conscienciosa
solte a emoção...
é e será sempre a vencedora!

29/3/10 6:30 da tarde  

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