quarta-feira, agosto 19, 2009

- ars longa, vita brevis -
hipócrates

antes e depois ou como “ok, eu sei que não é um antes e depois escarrapachado, mas isto vai lá com uma observação mais atenta. Há primeira vista parece que não diz o “c* com as calças”, mas diz e muito. A pintura de Hendrick Maertensz é uma típica pintura holandesa. O título (e tema), “The lute player”, é transversal: Gerrit van Honthorst, Gerard Terborch, Vermeer, Frans Hals. E embora nem todos o pintem de forma exactamente igual, há uma matriz que faz com que determinados elementos se repitam, ainda que sob outra ordem como o tocador, a jovem, a presença de animais, o lado para que está virado o alaúde… Neste “The Lute Player” vemos como o pintor se aproxima da moda da época nos seus últimos anos de trabalho. Ali podemos notar a presença de um jovem dandy com um alaúde de dois braços a entreter o objecto dos seus afectos (uma jovem que o olha impassível) junto a uma janela que se abre sobre um cenário urbano. A pintura, muito parecida com todas as que conhecemos dedicadas a este tema está, obviamente, repleta de alusões ao amor e ao enamoramento representado pelas duas personagens. Primeiro, a música era considerada uma “arte do demo” porque obscurecia a razão, enublava a postura e era um acessório protocolar do engate. Vemos depois na janela, a imagem típica do romantismo saloio com o rio e um homem num barco. Melhor mesmo só se a pintura fosse italiana e o barco fosse uma gôndola. O tocador de alaúde inclina a cabeça para a “pretendida”, a jovem anui, mas nisto dos amores, dizem, elas é que permitem a eles a conquista e fazem-nos acreditar que o mérito é deles. Há uma informalidade quase marital com as peças brancas (não estou a dizer que é roupa de baixo) espalhada pela sala e no fundo da mesa, o cão aos pés do homem (obediente, paciente, à espera de ordem para ir buscar a caça) e o gato aos pés da mulher (na modorra, tumescente e inebriado à espera que qualquer vontade própria ataque). Na mesa os frutos maduros (se calhar já tocados, if you know what i mean!), o vinho para libertar os espíritos e molhar a palavra e o pão cortado, juntamente com alguns restos de comida mostram-nos a encenação do tema, uma vez que representam, na minha opinião, a prova de que já tinha existido uma intimidade mais pronunciada do que a mostrada entre os dois intervenientes. É também um prenúncio do que dizem, acontece com as relações, o desgaste que sofrem e a forma como as carnes se consomem até ao fastio. Valha-nos Nosso Senhor que surge na parede e parece estar a dar a mão a alguém que sofre. “Virgem Santíssima, não permitais que eu viva, nem morra em pecado mortal. Em pecado mortal não hei-de morrer, que a Virgem Santíssima me há-de valer.” Amén, Amééééne.

A pintura de Miró inspirou-se na pintura de Hendrick Maertensz, disso não haja dúvida. Mas não é uma reprodução, é uma interpretação segundo a época com o uso de cores planas bem delimitadas, abandono quase total (pelo menos em comparação com a fonte) de figurativismo, naturalismo, perspectiva o que representa precisamente a separação entre a intenção da identificação e a identificação da percepção. Como o original se chama “The lute player”, Miró reduz a sua interpretação quase a isso, quase ao elemento masculino e para uma maior esquematização do quadro, agrega as cores. A grande mancha de cor é castanha e representa o alaúde. Segue-se o branco que representa a mesa, as tais peças brancas muito visíveis na intimidade pintada por Hendrick desta vez formam uma massa que é a própria mesa e o colarinho do tocador. Miró exagera o tamanho do colarinho, que na realidade o tocador estivesse a usar um rufo. Estas manchas de cor esmagam completamente os restantes elementos como a mulher, que praticamente deixa de existir, a mesa e só não erradica os animais porque eles são importantes na analogia.

Joan Miró
Dutch Interior I
1928
The Museum of Modern Arts, Nova Iorque


Hendrick Maertensz Sorgh
The Lute Player
1661
Rijksmuseum, Amsterdão