segunda-feira, maio 25, 2009

- o carteiro -
Reabilitar o homem e canonizar a personagem:
O suicídio é visto por alguns como uma cobardia; por outros como um acto de coragem. E para outros, como um acto apenas. Talvez a associação que muitos fazem do suicídio à cobardia nos venha da religião, do Cristianismo que colocou ao mesmo nível num plano pós-vida, os que se suicidavam e os que assassinavam. Quem comete suicídio vai para o Inferno, não por ter colocado um "ponto final" na sua vida, mas por não ter aceite a Salvação por Cristo. Todos estavam condenados ao inferno (ver a parte da bíblia onde fala do suicídio), embora o suicídio seja um acto voluntário (excepto aqueles casos de suicídio forçado ou do harakiri). E falo do Harakiri porque acho que se relaciona com o que aconteceu com Judas Iscariotes, o apóstolo banido dos 12 e substituído após o suicídio por Matias. Este não é um post apócrifo nem cabalístico que defende as teorias ao estilo Dan Brown; pouco sedimentadas e com interpretações cruzadas em número suficiente para toldar a santa visão de um santo. É antes um post que pretende desmistificar – embora a figura esteja envolta numa certa mística – a ideia de que Judas foi o traidor de Cristo e que a sua morte foi um castigo da sua consciência. E que cada um tem direito de ministrar a si a morte que deseja pois por mais que se busque, a morte só existe para quem morre e não para quem fica a ver morrer.
Comecemos por distinguir Judas Tadeu de Judas Iscariotes sem grandes aprofundamentos pois para isso temos isto aqui . Acredito que Judas, o nome Judas signifique, como li em vários livros, “abençoado”. Embora em França o nome “judas” seja aplicado para designar uma pequena abertura utilizada por qualquer pessoa mal intencionada que pretenda espreitar o outro. E que Iscariotes remeta para a o conjunto de vilas de Queriote- Ezron (Josué 15, 21-25) e que quer dizer (cidade de Ezron). Como era costume as pessoas serem conhecidas pelo seu nome e pelo nome da sua cidades (Maria de Magdala, Jesus de Nazaré, etc…), não seria de estranhar que Judas Iscariotes fosse o “abençoado de Queriote”. Há depois quem decomponha a palavra e lhe junte “ish” que quer dizer “homem”. A outra teoria, também credível e muito divulgada principalmente no filme “A Última tentação de Cristo” de Martin Scorsese diz que Judas pertenceria a um grupo “terrorista” da época, uma espécie de anarquistas que pretendiam instalar uma nova forma de poder e expulsar os romanos. O nome Iscariotes viria então da união de Judas aos sicários (sicarii em latim quem dizer “punhal”), um sub-grupo dos zelotes que fazia incursões ofensivas contra os romanos que governavam na Palestina. Judas é apresentado em A Última Tentação de Cristo como um revolucionário que se junta a Cristo, primeiro com a intenção de vigiá-lo acabando depois por se render à mensagem de Cristo. Se assim fosse, era possível que Judas tivesse confiado em Jesus para liderar a revolta contra o ocupante romano. Mas perante toda a resistência de Cristo face à tomada de poder e violência, Judas entregou-o às autoridades. Há quem reverta o sentido desta história e a torne a grande razão pela qual Cristo conseguiu a sua morte em glória e consequente salvação do Mundo. Judas teria sido mandatado por Cristo para este o entregar ao Sinédrio e assim tornar irreversível a sentença da sua morte por evidentes provas.

Caravaggio
Taking of Christ
c. 1598
National Gallery of Ireland, Dublin
Mas o nome do homem não faz o homem. Pode persegui-lo, mas não o faz. Tenho a certeza que haverá muitos Adolfos sem problemas com raças ou megalomania. E que haverá muitas Marilyns de cabelo negro vareja. Por isso não podemos basear o destino de Judas no seu nome, embora o mesmo tenha ajudado a vincular a imagem de um homem traiçoeiro e embora tenha sido isso que a Igreja Católica fez. Antes de ser um traidor, Judas era o responsável pelos dinheiros do grupo de apóstolos. Ele era portanto o tesoureiro dos 12. Mostrou-se por vezes um pouco sôfrego, economicamente falando. Um das passagens da Bíblia que conta como Judas era apegado ao dinheiro é relatada por João (João 12, 1-6) quando, estando os apóstolos em casa de Maria e Marta, este demonstrou descontentamento por ter de desembolsar 300 dinheiros. É por este motivo, menos comum claro está, que o acto de denúncia de Judas é conotado com alguma avareza que até seria justificada com o facto de não o ter feito de livre vontade, mas sim a troco de 30 siclos (moeda da época e não 30 “dinheiros” como se costuma dizer). A Igreja e os seus doutores preferem dizer (e é isso que está escrito acerca da justificação para o seu suicídio) que Judas se suicidou porque depois de ter denunciado Jesus não foi capaz de lidar com o Desespero (filho do Diabo) e com os sentimentos de culpa; ou seja, não foi capaz de lidar com o peso da sua consciência. São três as passagens que falam do suicídio de Judas: Vemos isso em Mateus (Mateus 27, 3-5), em II Samuel (II Samuel 17, 23) (embora aqui se fale de Aitofel e não de Judas. Aitofel era conselheiro do rei David e traiu-o. Daí a comparação com Judas) e nos Actos dos Apóstolos (Actos dos Apóstolos 1:18). Porém, as passagens, quando analisadas podem ser consideradas contraditórias e feitas para esconder a morte falhada de Cristo. Bem, não há dúvida, segundo a história bíblica que Cristo morreu no madeiro. A forma como morreu já levanta algumas dúvidas. Há quem defenda até que a posição com que é retratado nos quadros não é a verdadeira: que se lhe tivessem sido pregados apenas pregos nas palmas das mãos e não lhe tivessem amarrado os pulsos, os tecidos humanos não aguentariam e Jesus teria escorregado da cruz e por isso não se teria mantido até expirar. A morte teria sido muito mais rápida ou então não teria sido assim. Mas como estava a dizer, o dramatismo da morte de Cristo pode ter sido empolado pela morte e traição de Judas. Note-se que a morte do Cristo é antecedida pelo seu consumo: antes mesmo de ter morrido, na Última Ceia, Cristo diz “Tomais e comei todos, este é o meu corpo…”(Marcos 14, 22). Ora com todo o respeito um animal não é comido antes de ser morto. Isto serve para corroborar a tese da consubstanciação em que a carne e o espírito habitam ao mesmo tempo na hóstia sagrada, ao contrário da Transubstanciação em que o espírito e a carne oscilam a sua presença na hóstia. Só o facto de Cristo já estar morto quando se dá a Última Ceia permite a sua ressurreição pois se ele se tivesse feito alimento – pão e vinho – depois de morto, isso seria um pleonasmo.
Giotto di Bondone
No. 28 Scenes from the Life of Christ: 12. Judas' Betrayal
1304-06
Cappella Scrovegni (Arena Chapel), Pádua
Há a possibilidade descrita no Levítico (Levítico 16, 5-22) de o sacrifício de Jesus mais não ter sido que uma recriação de um ritual anual de expiação em que se sacrificava não um cordeiro de um ano, mas dois bodes. Um deles seria crucificado para os pecados do povo e o outro para expiar esses mesmos pecados e por isso levado para o deserto ela abandonado preso a um arbusto por uma fita vermelha. De facto Cristo morre fora da cidade, no Calvário amarrado a um madeiro e com um manto vermelho. Jesus seria então o bode expiatório ao morrer desta forma. Seria necessário encontrar outra pessoa que fizesse de bode expiatório para Jesus ser apenas o “cordeiro”. Esse bode podia ter sido Judas pois a sua morte é que o mostra como um bode expiatório como vimos em Mateus. Há também aqui uma transferência de espíritos nestas duas mortes. Quando Jesus vem do deserto, antes da sua morte e antes da Última Ceia Lucas diz “E, acabando o diabo toda a tentação, ausentou-se dele por algum tempo.” (Lucas 4, 13), o que quer dizer que o demónio habitava no corpo do Salvador. Depois esta versão é de certa forma corrigida quando se diz em que Satanás já havia entrado no corpo de Judas antes da Última Ceia, quer dizer, no dia da Última Ceia, mas antes da mesma, e que o iria denunciar e que Cristo, também através do diabo, sabia deste facto (Lucas 22, 3-6). Pode relacionar-se uma coisa com a outra, mas se ainda assim não for suficiente para canonizar Judas, há outro facto relevante. Em Mateus e nos Actos dos Apóstolos há diferenças na forma como Judas morreu ou num pormenor muito importante que antecedeu a sua morte: Mateus diz que Judas se arrependeu e devolveu o dinheiro aos sacerdotes (Mateus 27: 4-6) e os Actos dos Apóstolos dizem que antes de se suicidar Judas teria comprado o seu campo de sangue; ou seja, o local onde iria morrer, quase como se tivesse adquirido uma campa num cemitério (I 16-19). Se foi como é dito em Mateus, Judas nada ficou a dever. Se foi como dizem os Actos do Apóstolos, Judas acabou por pagar o seu sacrifício. É tal como no sacrifício da expiação em que se matam dois bodes. Diz o Levitico que juntamente com o bode a pessoa terá de entregar dinheiro para que o Sacerdote faça o sacrifício da expiação. Judas teria entregue o seu dinheiro. A diferença é que num caso os sacerdotes pagam a Judas para ele se tornar o sacrificado e no outro é ele que paga a sua morte.

Jacques Callot
Mort de Judas
1635
Auckland Art Gallery
Gislebertus
Suicide of Judas
1120-30
StoneCathedral of Saint-Lazare, Autun
Por isso acho que Judas deve ser canonizado. Se a própria Bíblia diz ser uma passagem de difícil interpretação, porque é que se ostraciza o rapaz? Se há certezas quanto ao seu arrependimento, o que importa se o homem preferiu comprar um lugarzinho asseado para morrer? Ele não morreu mais rico! Deixem jogar o Judas.