quinta-feira, outubro 30, 2008

- original soundtrack -

When I think that
I'm over you
I'm overpowered

Your data, my data
The chromosomes match
Exact doesn't matter
A matter of fact

These amoring feelings
A cognitive state
Need the love object
To reciprocate

When I think that
I'm over you
I'm overpowered
It's long overdue
I'm overpowered

When I think that
I'm over you
I'm overpowered
It's long overdue
I'm overpowered

A chemical reason
It reason's your game
A chemical needing
Is there in the brain

With preprogrammed meanings
Like a little more pep
Alien feelings
We have to accept

When I think that
I'm over you
I'm overpowered
It's long overdue
I'm overpowered

As science struggles on to try to explain
Oxytoxins flowing ever into my brain

As science struggles on to try to explain
Oxytoxins flowing ever into my brain

(Overpowered, Roisin Murphy)
- não vai mais vinho para essa mesa -

cúmulo da idotice: agitar um iogurte depois de o ter aberto ("Salvatore stupido, stupido, stupido!")
- ars longa, vita brevis -
hipócrates

antes e depois ou como "entre os Futuristas, o Carrá foi aquele que sempre me entusiasmou menos, je ne sais pas pourquoi. Tanto que o dava como Expressionista Abstracto porque o confundi com o Sandro Chia. Já sei que não tem nada que confundir, que são nomes diferentes, mas os dois são italianos e confundi, pronto, o que é que se vai fazer? Este grupo de Futuristas teve um papel muito importante, ainda que breve, na arte italiana. É que desde Tiepolo a Itália não dava ao mundo artistas relevantes no momento. Digo no momento porque muitos foram redescobertos, mas digamos que passado o Maneirismo nunca mais se ouviu falar de arte italiana. Meteu-se o Rococó na Aústria, os Neoclassicismos em França, os Romantismos em França, os Realismos em França, os Impressionismos em França e os Pós-Impressionismos em França e em seguida meteu-se a Primeira Guerra Mundial. Os Futuristas e a Itália sentia-se excluída do debate cultural. Não obstante a Bienal de Veneza criada em 1895, a Itália nunca mais produziu movimentos artísticos, nunca mais esteve na vanguarda. O que motivou o Futurismo foi tudo menos nobre: orgulho nacionalista ferido, algum chauvinismo e a necessidade de marcar posição pela oposição. Numa altura em que a Europa tinha sido assolada pela guerra, guerra essa que se fez com recurso a máquinas bélicas, o Futurismo exacerba a máquina e professa, não sem alguma ingenuidade o desenvolvimento social e económico. Os Futuristas pretendiam começar do zero, "libertar a Itália dos inúmeros museus" (segundo Manifesto Futurista) e mudar a Itália pois já fazia bastante "tempo que a Itália é o grande mercado dos negociantes de velharias" (primeiro Manifesto Futurista). Como, mesmo antes de Mussolini, faziam a apologia do imperialismo, da beleza da guerra, da crueldade da vida e da violência, basearam toda a sua teoria na intuição; ou seja, tudo o que se assemelhasse ao enunciado, era aceite. (A relação com Mussolini é directa. Exacerbavam as potencialidades de um carro de corrida que segundo eles "era mais belo que a Vitória de Samotrácia", e acabaram por ter o seu próprio carro de corrida político; o fascismo de Mussolini que por acaso foi um piloto amador de corridas.) Mas quando se aperceberam que eram para Mussolini apenas uma forma de este propagandear e legitimar o uso da força sem razão, os futuristas, voltaram costas ao Duce e por essa altura já o movimento estava desfeito. Breve, mas capaz de deixar marcas como esta do movimento. Uma das maiores dificuldades dos futuristas deverá ter sido, não sei, calculo, a desadequação entre o que defendiam e o que tinham. Tinham telas e ainda não pensavam em pintar em paredes, nem utilizar objectos nas telas, os usar apenas objectos. Então, como transmitir numa tela, o movimento, a febre do movimento? O Futurismo não era a arte do movimento. A arte do movimento era o cinema e com o cinema, o Futurismo e as suas técnicas não podiam competir. O Futurismo serviu-se um pouco do Cubismo para isto, desenhando vários movimentos associados a actividades que implicavam velocidade, sempre no mesmo espaço na tela. Há até um quadro que mostra isso muito bem, é de Boccioni e tem um cão preto, muito pequeno, em passo apressado. O cão não é mais do que um tufo de pelos pretos que sobrepostos dão a ideia de que o cão vai a correr.


Carrá não era o mais apreciado dos futuristas. Aquele que o público preferia era Gino Severini, muito mais ponderado em relação à excitação com a máquina e com a destruição. Mais ponderado também quando se tratava de passar para a tela essa diferença subtil que se chamava "movimento" e que separava, segundo estes, Futuristas de Cubistas. Mas na maturidade da sua vida artística, quem Roy Lichtenstein preferiu "copiar" ou pelo menos, recriar, foi Carlo Carrá e o seu Cavaleiro Vermelho. Não abdicou no entanto da técnica da impressão gráfica e da fotografia de jornais e revistas, que ampliada deu origem ao célebre pontilhismo dos seus quadros. Mas ao escolher Carlo Carrá e os Futuristas, ele domestica o traço rigoroso do movimento, de tal forma que deixa de ser movimento para passar a ser contenção:"

Carlo Carrá
Cavaleiro Vermelho
1913
Pinacoteca di Brera, Milão


Roy Lichtenstein
Cavaleiro Vermelho
1974
Museum Moderner Kunst, Viena



- o carteiro -

what to wear I (Gregos e Romanos):
Inicio aqui um conjunto de posts, que espero ser capaz de cumprir, dedicados à história do vestuário até aos nossos dias. o que vestiam as pessoas, de que tecidos eram feitas as suas roupas, porquê, quais as cores que usavam, o que é que ditava a moda em determinado tempo and so on. não se trata de um post sobre moda, mas sobre história do vestuário, sendo que em alguns momentos será história da moda. O que separa estas duas noções é que em certos casos, a roupa distingue quem pode seguir a moda, as tendências e quem tem de usar o que é mais simples e que serve melhor as funções, isto sem esquecer que o próprio tempo dita a moda e que esta está dependente das técnicas, conhecimentos e materiais disponíveis.
Se a necessidade aguça o engenho e o hábito faz o monge, isso é lei na Grécia Antiga. Os gregos vestiam aquilo que se chama quíton: era uma peça quase sem cortes, que prendia num ombro só ou nos dois ombros, no caso da mulher graças a alfinetes ou broches e no caso dos homens com cordões ou cintos em torno da cintura e broches a prender num dos ombros. Isto numa primeira fase pois mais tarde o traje passou a ser constituído por dois quítons já com costuras. O quíton podia ser de lã (quíton dório) ou de linho (quíton jónio), sendo que este era mais flexível e por isso permitia maior variedade de modelos. Os jovens e os cavaleiros usavam por cima do quíton uma capa curta (clâmide). Durante o tempo frio (e isso foi uma coisa que sempre me intrigou, "então, mas esta gente nunca tem frio?), a clâmide dava lugar a uma capa mais comprida e larga chamada himation e que era usada tanto por homens como por mulheres, embora a clâmide feminina se chamasse peplo. Mas atenção que era comum usar a clâmide sem o quíton, que é como quem diz, não usar nada por baixo. E era exactamente assim, "no osso" que os gregos iam ao ginásio (Ginásio vem do grego gymnásion e era lá que os ginastas ficavam exercitados: gymnás. No entanto, gymnás também quer dizer nu, sem roupa, despido. Para os gregos a nudez não constituía qualquer problema).
E que ideia temos nós da cor da roupa que os gregos vestiam, até por aquilo que vemos nos filmes? Que era branca. Pois, mas não era. O que se passou foi que durante as descobertas feitas no Renascimento as estátuas e esculturas recuperadas tinham perdido a cor e acreditou-se que as vestes eram brancas. Sabe-se pelos frescos que nos chegaram que as vestes eram coloridas e estampadas, excepto no caso dos pobres. Mesmo assim havia membros de classes sociais inferiores que tingiam a roupa de vermelho, embora essa prática fosse proibida. As roupa também não eram completamente simples; ou seja, tinham adornos nas extremidades, adornos esses que não eram colados mas bordados. Os temas eram os mesmos de hoje como os motivos florais e os padrões de animais ou o desenho dos próprios animais. Isto era uma espécie de luxo, assim como os materiais das capas, embora as leis sumptuárias procurassem restringir a variedade no vestuário feminino. Conhecem aquela célebre frase "à mulher de César não basta ser séria, tem de parecê-lo"? Aplica-se na totalidade pois não era comum as mulheres gregas competirem entre si para ver quem era mais bela ou se vestia de forma mais original. Era até aconselhado que permanecessem em casa para evitar isso. A grande diferença era nos cabelos: as mulheres ricas podiam usar tiara.


Os penteados, esses sim evoluíram. Antes das guerras contra os persas, homens e mulheres usavam cabelos compridos, mas mais tarde considerou-se que os cabelos compridos eram mais adequados a crianças ou a mulheres. Quando as crianças atingiam a puberdade cortavam os cabelos e davam-nos como oferenda aos deuses. No decorrer dos séculos os penteados foram-se alterando: primeiro as senhoras prendiam os cabelos com uma fita, depois passaram a fazer um cocuruto com o cabelo apanhado na nuca, cabelo aos cachos ou frisado e até passaram a usar pequenos chapéus cone. Até ao século V a.C. os homens usaram barba e o costume manteve-se para os filósofos. Os homens mais novos e os que tinham profissões menos nobres acabaram por se desfazer da barba. Nota-se isso também na representação de deuses: os mais novos como Apolo, estão barbeados e os mais velhos como Zeus têm barba.
Quanto ao calçado (outra coisa que me fazia alguma impressão), os gregos praticamente não o usavam. Em casa dispensavam o calçado e fora de casa usavam sandálias presas aos pés e tornozelos com fitas. Os pobres não usavam calçado e as cortesãs calçavam sandálias com folha de ouro e na sola uns pregos. Quando caminhavam, os pregos marcavam no chão a palavra "siga-me". Apesar de fazerem exercício físico nus e de a nudez não ser problema na Grécia Antiga, os gregos não andavam sempre nus e a ideia do guerreiro grego nu é mais o resultado de experiências visuais limitadas do que correspondência directa com a verdade. Os soldados gregos iam para o campo de batalha com uma túnica feita de tiras de couro cobertas por placas de metal, usavam elmo, espada e escudo, ainda perneiras (talvez por causa de Aquiles) e dependendo do tipo de contingente em que ingressavam, usavam também a clâmide e o elmo variava.







Quando Roma passou de cidade-estado para capital do Império destronando Atenas, era um território formado por etruscos que tinham também eles a sua forma de vestir. E o vestuário etrusco tinha influências do vestuário grego e da Ásia Menor, por isso quando falamos de vestuário romano, falamos na realidade da mistura de influências. Dos etruscos os romanos retiveram a toga, um semi-círculo que drapejavam em torno do corpo, de forma cada vez mais elaborada, o que não permitia muitas vezes realizar grandes movimentos. Era por isso a peça escolhida para senadores e homens de classes superiores que as podiam ter brancas. As crianças do sexo masculino até à puberdade usavam uma toga com uma barra roxa e mudavam para uma toga toda lisa e branca em cerimónia adequada. Em tempos de luto a toga era de cor escura e cobria a cabeça. Com o tempo as tamanhas da toga foi diminuindo e foram-lhe acrescentadas costuras, cintos e peças complementares. Quanto às barbas, os romanos começaram por usá-las compridas, depois passaram a barbear-se e quando Adriano se tornou imperador a barba voltou a estar na moda. Os cabelos eram ondulados com canudos feitos por ferros quentes e os chapéus não eram muito comuns.



Se os gregos não tinham problemas em fazer ginástica sem roupa, um pouco de pudor era pedido aos romanos e por isso usavam roupas reduzidas muito semelhantes aos nossos biquinis. O vestuário feminino do dia-a-dia acompanha o masculino, à excepção da túnica que era mais comprida para as mulheres, mas tinha a vantagem de ser de seda (no caso de uma mulher de família rica), colorida e bordada. Aliás, a mulher romana foi fortemente influenciada por Ovídio e pelos seus conselhos em "Arte de Amar". As mulheres usavam descolorantes, conforme Ovídio dizia, pois o que estava na moda eram os cabelos loiros. Para além disso havia já a tradição das cabeleireiras (ornatrix) que faziam cachos no cabelo e emolduravam os rostos femininos colocando-os estrategicamente. Era comum, mais comum até que na Grécia, usar postiços e perucas e inúmeras jóias quer no cabelo quer nas vestes. Tiara, anéis, brincos, camafeus, tornozeleiras e colares, tudo isso fazia parte da rotina feminina em Roma. Os adornos iam do topo da cabeça, à ponta do pé, com variações nas sandálias ao nível das cores e dos bordados com pedras preciosas. Quanto ao frio, a minha preocupação desde sempre, há que dizer que no Inverno aquelas vaidosas lá calçavam botas!


Quando o Império mudou de Romano do Ocidente para Oriente tendo como capital Bizâncio, este luxo provinciano de Roma, um luxo tímido esquartejado por leis, deu lugar a um luxo muito maior próprio do Oriente. Embora as vestes cobrissem mais o corpo, eram mais elaboradas e adornadas com broches, bordados e clâmides de cor púrpura. À volta da cabeça o imperador usava uma tira de tecido que mais tarde deu lugar a uma coroa. A coroa aberta de Justiniano deu lugar a uma coroa fechada (camelaukion), o roxo era usado apenas para o casal imperial (escolher uma imperatriz era como organizar um concurso de beleza sem quaisquer pré-requisitos a nível de cultura. quando ficavam as mais bonitas por eliminação das menos bonitas, era o próprio imperador que escolhia a vencedora oferecendo-lhe uma maçã) e todos os pormenores estavam calculados. Mesmo após a queda de Constantinopla o estilo dos imperadores continuou a inspirar outros reinos e ainda é a fonte usada nas cerimónias da Igreja Ortodoxa.

- o carteiro -

notícias do mundo a arte:

[1]

A exposição "Meat after Meat Joy" (em que Meat Joy corresponde à performance de Carolee Schneeman em 1964, com o mesmo nome e que pode ser vista aqui), é uma exposição perene e muito breve, se não mesmo, mal cheirosa e nauseabunda ao fim de alguns dias. Vê-la pode ser uma experiência estimulante para o apetite como dissuasora de qualquer intenção de levar alimento à boca. Isto porque os artistas que se reúnem sob esta denominação "Meat After Meat Joy" conceberam obras, com inúmeros suportes, mas um só material: carne. A exposição estará patente até 15 de Novembro na Daneyal Mahmood Gallery em Nova Iorque, tem como curadora in New Heide Hatry e inclui trabalhos de escultura, fotografia, pintura e vídeo. Aliás, o de Carolee Schneeman será projectado numa das paredes da galeria. A galeria diz que a exposição visa apenas estudar a relação entre o paradoxo e a concordância entre a carne e o corpo humano, bem como mostrar o efeito que a carne produz como meio entre a artista e o visitante. Explica também que esta não é uma exposição de carne, ou com carne, ou sobre carne, enquanto espectáculo, porque a carne não significa "corpo", mas no estado em que é mostrada, significa antes a própria destruição do corpo (até aqui concordo, um estômago fora do corpo humano implica que alguém ou qualquer animal terá ficado sem ele). É a isto que se "agarra" a PETA que já em Julho tinha chamado a atenção e pedido a suspensão da exposição. A galeria usou uma frase do próprio press release da PETA para se justificar dizendo que o espaço expositivo era diminuto e que dadas as vicissitudes das peças, algumas delas nem sequer seriam expostas. Algumas peças estão a ser conservadas, durante o tempo que dura a exposição, em compartimentos mais frios, mas outras como American Flag, com o calor das luzes já entraram em decomposição e têm mesmo larvas (ugh!!!).

[2]

David Altmejd tem uma exposição na Modern Art em Londres, até ao dia 15 de Novembro e as peças não poderiam ser mais horrendas. (Deixo aqui uma imagem para não terem dúvidas). Trata-se de uma exposição de imitação da taxidermia. O homem com a cabeça de pássaro que esteve em exposição no pavilhão do Canadá na Bienal de Veneza de 2007 dá agora lugar a corpos em carne e músculos, olhos fora das órbitas, tendões à mostra, corpos que simulam sexo com outros corpos (não se percebe bem porquê, a não ser para mostrar como o sexo pode parecer feio quando as pessoas são mostradas, literalmente, por dentro) e pouco gosto. Esta exposição mete num bolso Damien Hirst e os seus animais embalsamados, assim como faz com que aquele senhor que expunha corpos humanos dissecados (de origem duvidosa), de seu nome Gunther von Hagen, um filantropo científico. A exposição é terrível: a começar pelo facto de existir uma montra com um corpo a ser exibido para o exterior (há crianças, pelo amor de Deus!), depois é toda a decoração (paredes negras, espelhos, plintos (eu já não via plintos desde o século XVIII!) e por fim é o resultado final em si que é pointless. Quem é que vai comprar esculturas de corpos dissecados a ter sexo com outros corpos dissecados, na maior parte dos casos, entre dois homens (todo o respeito pela causa, mas não vejo o objectivo). Mais, as orgias esculpidas são tão más que o artista parece um menino da escola, com medo de chamar as coisas pelos nomes ou, neste caso, agarrar as coisas certas: há muitas vaginas e muitos pénis, mas o que há mais são mãos. Há mais mãos do que pessoas e estão timidamente esculpidas.

[link]

- não vai mais vinho para essa mesa -

(...)
Eu queria ser mulher para excitar quem me olhasse,
Eu queria ser mulher pra me poder recusar...
(...)

(Feminina, Mário de Sá-Carneiro)

segunda-feira, outubro 27, 2008

- original soundtrack -

Oh, lord, help me walk
Another mile, just one more mile;
I'm tired of walkin' all alone.

And lord, help me to smile
Another smile, just one more smile;
Don't think I can do things on my own.

I never thought I needed help before;
Thought that I could get by - by myself.
But now I know I just can't take it any more.
And with a humble heart, on bended knee,
I'm beggin' You please for help

Oh come down from Your golden throne to me, to lowly me;
I need to feel the touch of Your tender hand.
Release the chains of darkness
Let me see, Lord let me see;
Just where I fit into your master plan.

I never thought I needed help before;
Thought that I could get by - by myself.
Now I know I just can't take it any more.
And with a humble heart, on bended knee,
I'm beggin' You please for help
With a humble heart, on bended knee,
I'm beggin' You please for help



(Help Me, Johnny Cash)
- ars longa, vita brevis -
hipócrates
antes e depois ou como "para mesmo quem não gosta, o calendário Lavazza é sempre uma obra de arte. E tanto é uma obra de arte, ou digamos antes, uma Birkin Bag da Hermès com meia-dúzia de exemplares e listas de espera de três anos. As cópias são poucas e os felizardos são escolhidos (também devem pagar por isso) a dedo. No entanto e ao contrário do Pireli que tem uma fotografia por cada mês, o Lavazza tem uma por cada dois meses, o que é pouco. Mas há que dizer que a Lavazza tem-se esmerado ao apresentar sempre temas para os seus calendários. No ano 2007 o calendário foi dedicado aos heróis de banda desenhada, aos filmes noir e a alguma obra de Hopper, este ano, ou melhor, o ano de 2009 é dedicado a Roma, à arte, cinema, história e cultura de Roma, naquilo que a Lavazza chama de “Italianity”. A fotógrafa convidada foi Annie Leibovitz que realçou cenas de filmes, obras de arte importantes e monumentos emblemáticos. Nem todas estão bem conseguidas (podem ver aqui), mas esta parece-me a melhor. Faz a analogia entre a loba capitolina e uma modelo que se coloca, masi ou menos, na mesma posição que a loba. Em baixo tem duas crianças a fazer de Rómulo e Remo e nhuma das mãos segura uma chávena Lavazza. O pior da fotografia é que parece estar presa dentro do Coliseu de Roma e a meu ver, tal enquadramento não era necessário. Digo isto porque se a loba capitolina mostra o momento da fundação de Roma, a lenda que lhe deu alento, não devia estar associada a um monumento tão posterior à fundação. Eu escolheria a Coluna de Trajano que conta, em espiral e em baixo relevo, a história das batalhas pela conquista da cidade e que se encontra no Monte Quirinal. Mas isso sou eu. Outra coisa que nem sempre resulta bem nos calendários Lavazza é a contextualização da chávena de café. Na maior parte das vezes aparece só porque tem de aparecer, porque o calendário é da marca, mas sem as chávenas passaria muito bem. Esse é um mal de que os calendários Pirelli não padecem porque mostram mulheres nuas ou com pouca roupa e nem estas têm pneus nem a marca exige exibir os pneus":

Lupa Capitolina
século V-VI a. C.
Musei Capitolini, Roma


Annie Leibovitz
Calendário Lavazza 2009
- ars longa, vita brevis -
hipócrates

- Ágata, Ágata! Vem ou não? Estamos à sua espera para o chá.
- Ó mãe! Ai Meu Deus! Aconteceu uma desgraça! Ó mãe, venha cá!
- Venha cá você! Não vê que temos visitas? Desculpem a Ágata. Depois de ter ido ao "Querido mudei a casa" fui ao "Doutor preciso de ajuda" e comprei um bocadinho de ajuda para a Ágata. Quer dizer... não fui eu, foi o meu marido. Comprei-lhe uma copa C. Eu teria preferido uma copa D, mas a Ágata disse logo que não. Ágata!!!!
- Já vou!
- Foi o Dr. Tulp do Rembrandt quem lhe fez a operação. Ágata, venha mostrar a sua nova figura!

John Currin

- Ó mãe, veja isto! Saíram!

Francisco de Zurbarán
St Agatha
1630-33
Musée Fabre, Montpellier
- Ó Ágata, francamente! O que vão dizer os meus amigos? O que vão dizer os seus amigos? O que vai dizer o seu pai quando vir que a sua "ajuda" saiu? Como é que saiu?
- Sei lá!- Estava a ler, não estava?
- Não mãe.
- Estava a rezar?
- Não, também não. Estava a tirar os ovos às galinhas.
- Ágata já lhe disse para largar as galinhas. Como é que eu digo? Quem tem pena...
- ...é galinha e apanha no...
- Bom, venha cá. Que maçada! Você estava tão bem!
- Mãe, eu parecia uma vaca que não era ordenhada há mais de 20 horas.
- Olhe, dizem que dá jeito. Eu conheci o seu pai assim.
- Onde? Na ordenha? A mãe não me disse que o avô tinha vacas?
- Tinha, muitas. Mas não eram dessas. Eu é que conheci o seu pai quando parecia uma vaca que não era ordenhada há 20 horas. Só que já lá vão 20 anos e sempre o mesmo volume. Uma perfeição!
- E agora o que é que fazemos mãe?
- Agora deixe-me acabar de tomar chá que estou mesmo a precisar. E pouse a bandeja aí na mesa. Longe dos brioches, pelo amor de Deus que eu hoje esqueci-me de pôr as lentes de contacto.
- não vai mais vinho para essa mesa -

queria que o post anterior tivesse sido melhor, mas cada um dá o que tem e a mais não é obrigado. embora eu me obrigue. o que explica muitas muitas.
- o carteiro -
agora que a hora mudou e que às 23horas já toda a gente boceja porque o corpo pensa que é meia-noite, achei por bem fazer um post sobre as horas. Parece que não há muito a dizer, não é? Talvez o filme tivesse mais, mas o filme só existe, o relógio só existe porque existem as horas. E existe uma explicação lógica para a sua existência.
Inicialmente as horas (do latim horae e do grego horai), não separavam as diferentes partes do dia e não estavam em nada relacionadas com o dia. As horas têm um significado pagão e estavam associadas à divisão tripartida do ano (uma divisão que hoje é feita em quatro partes pois não se eliminava o Outono): Inverno, Primavera e Verão. Na Grécia Clássica as horas estão relacionadas com Talo (que representava a florestação), Auxo (que representa a recolha o fruto) e Carpo (que representa a maturação), mas também com as Graças pois todas elas tinham uma característica diferente.
As Horas são geralmente representadas em dois conjuntos de seis: seis jovens à esquerda de Hélios e Apolo e seis jovens à direita, e os seus cabelos, segundo a representação, estão presos ao sol. Elas representam a concepção cíclica do tempo e a renovação periódica da natureza. Já na iconografia cristã a sua disposição está intimamente ligada à disposição que já antes tinham os anjos (os serafins de vermelho e os querubins de azul), à volta da Mandorla (espécie de trono amendoado onde Cristo governa os destinos terrestres e divinos. Temos aqui dois exemplos da representação das Horas. Neste temos apenas seis jovens, mas é como se cada um delas representasse, não um período de tempo concreto, mas um período colectivo como as actividades humanas que se desenrolam do início do dia ao fim do mesmo. A primeira jovem representa a primeira hora da manhã, a hora de acordar e arranjar. A terceira já tem uma roca na mão, o que quer dizer que já está a trabalhar. Uma delas toca um instrumento musical e a última, dorme.

Edward Burne-Jones
The Hours
1870-1882
Sheffield City Art Galleries, Sheffield

Mas a representação cristã também deu espaço a alguns gnósticos que viram nas Horas uma forma de codificarem o conhecimento religioso. Assim é usual as horas estarem associadas aos doze apóstolos ou, mais commumente, aos quatro evangelistas, uma vez que se dividia o dia em quatro partes.


Paolo Uccello
Clock with Heads of Prophets
1443
Duomo, Florença

sábado, outubro 25, 2008

- back to black -

"I tell you, the more I think, the more I feel that there is nothing more truly artistic than to love people." - Vincent van Gogh

quinta-feira, outubro 23, 2008

- o carteiro -

ohhhhhh, não passou. não faz mal, quando passar, se passar, volto a avisar.
- original soundtrack -

Well, Im a voodoo chile
Lord Im a voodoo chile

Well, the night I was born
Lord I swear the moon turned a fire red
The night I was born
I swear the moon turned a fire red
Well my poor mother cried out lord, the gypsy was right!
And I seen her fell down right dead
(have mercy)

Well, mountain lions found me there waitin
And set me on a eagles back
Well, mountain lions found me there,
And set me on a eagles wing
(its the eagles wing, baby, what did I say)
He took me past to the outskirts of infinity,
And when he brought me back,
He gave me a venus witchs ring
Hey!
And he said fly on, fly on
Because Im a voodoo chile, baby, voodoo chile
Hey!

Well, I make love to you,
And lord knows youll feel no pain
Say, I make love to you in your sleep,
And lord knows you felt no pain
(have mercy)
cause Im a million miles away
And at the same time Im right here in your picture frame
(yeah! what did I say now)
cause Im a voodoo chile
Lord knows Im a voodoo chile

Well my arrows are made of desire
From far away as jupiters sulphur mines
Say my arrows are made of desire, desire
From far away as jupiters sulphur mines
(way down by the methabe sea, yeah)
I have a humming bird and it hums so loud,
You think you were losing your mind, hmmm...

Well I float in liquid gardens
And arizona new red sand
(yeah)
I float in liquid gardens
Way down in arizona red sand

Well, I taste the honey from a flower named blue,
Way down in california
And the n new york drowns as we hold hands

cause Im a voodoo chile
Lord knows Im a voodoo chile
Yeah!

- não vai mais vinho para essa mesa -

por mais que se pense que o Portugal profundo está mesmo muito fundo, enterrado entre os montes e as pedras perto da fronteira, que os espanhóis já começaram a comprar, e que está nos espigueiros e nas eiras (minudências provincianas, dizem), e que já não se planta a batata como antigamente (eu tinha sorte, era pequena e ficava a ver os adultos a apanhar batata enquanto bebia Sucol de alperce, sentada numa toalha aos quadrados vermelhos, à sombra) e que as mulheres não rezam enquanto cavam, deixem-me dizer-lhes que em muitas cidades, grandes cidades, ao virar da esquina, onde um autocarro em pressa larga fumo como larga passageiros, ainda há casas com pequenos recantos para pencas e salsa, "que a vida está cara, menina". Há uma ou outra árvore de fruto, árvore essa em que mulher menstruada não toca, e uma senhora de lenço na cabeça, vestida de preto, a apoiar-se na enxada enquanto descansa os costados e observa o fumo do escape em cima das pencas para a consoada de Natal. Dentro do autocarro, ao meu lado, muda o contexto, mudam as roupas, mas não muda a conversa:
- Bócê tem pencas pra este Natal?
- Num tenho nada. Os caniços déro-me cabo de tudo. Bou ter quir comprar.
- Onde é que bai cumprar?
- Pois olhe onde compro… tenho dir ao Henrique Feijoca que tem pencas menina... Aquilo é cinco minutinhos nu lume. Troços é mais, troços é dez minutos.
- Benha lá a casa queu bendo-lhe, tenho muito. Inté tenho para as pintas, beja bocê!
- E são bôas? Bocêmesse beja lá! Im casa o meu Nel é munto comedeiro, gosta delas bôas e a desfazerem-se na boca. Quando lhe espeta o garfo e a penca adesenrola-se e cai, já num bica mai náda.
- São bôas, cunfie em mim. Eu inté lhe disse que dába às pintas. E num é que o raio das catraias estão mais bonitas? Botaram crescedura! Andabo munto escazumeladas, munto amarelitas, ma lá arrebitaro cum as pencas. Aquilo são pintas que fazem munta cumpanhia! Até parece que fálo cum a gente!
- E o meu caniço? Bocê num sabe... Inté disse à minha mais belha: "Este cão bai dar gente".
- ars longa, vita brevis -
hipócrates

antes e depois ou como "admito que este possa ser mais discutível, mas foi a própria criadora quem o disse. Alessandra Facchinetti, responsável pela marca Valentino desde que o mestre decidiu deixar estas lides e ir gozar a reforma disse: "I researched embroidery, looked at van Dyck and contemporary paper sculpture". É claro que o ar minimal e quase semelhante a uma cápsula que a modelo tem, não é igual ao retrato de Margareta Snyders, mas o que interessa são as golas que a casa Valentino subiu, tal como no original e com alguma timidez abriu em folhos. Gosto muito desta rapariga, esta Alessandra Facchinetti, mas tenho saudades do vermelho Valentino dos vestidos. Seja como for, é o meu antes e depois de hoje. Quem achar que não está bem, tem caixa de comentários:"

Anthony Van Dyck
Margareta Snyders
c. 1620
Frick Collection, Nova Iorque


Valentino
Haute Couture Outono Inverno 2008
- o carteiro -
até que enfim, aparecem gajas boas:
caro AM, bem sei que disse não concordar com a arte de género (procurei o link no seu blog, mas não encontrei), mas também é verdade que me deu a ideia para fazer um post sobre mulheres artistas. Acho até que já tinha feito, mas não tão abrangente. Não direi que há uma pintura de género, mas que dado o género se classifica a pintura. Ou a escultura. Se uma mulher artista é marcada, durante o seu percurso de vida ou durante o seu percurso artístico por um incidente (morte de um familiar, violação, doença, relações falhadas, muitas relações amorosas...), e o transpõe para a pintura, como é óbvio que o fará, essa passa a ser a sua característica. Não é a pintura em si que é apreciada, mas a sua vida. Se um homem, como por exemplo Caravaggio mantém relações sexuais com ambos os sexos, não é recordado por esse pequeno aspecto, mas pela obra. Claro que o número limitado de mulheres que tinha acesso a uma carreira artística condicionava e ainda hoje condiciona a forma como a sua carreira é apresentada. Mas não estou a ver, à época a Igreja encomendar um retábulo a Sofonisba e fê-lo sem qualquer impedimento e repetidas vezes a Caravaggio. Ele era, sem dúvida, infinitamente superior a ela! Mas é também claro que por terem uma existência formatada há séculos, as mulheres nunca puderam exercer tão bem quanto os homens a sua actividade artística. E isto não é desculpa, é verdade. Gosto mais das prostitutas de Caravaggio a fazer de Virgens Maria do que dos meninos a brincar da Sofonisba. Basta pensar que ela provavelmente nunca saia de casa sem ser acompanhada e ele nem residência fixa tinha. As experiências acompanharam-nos para o bem e para o mal.
Se situarmos o post no início do Renascimento, altura em que se dá o florescimento das artes e actividades artísticas, proporcionando mais trabalho e desenvolvimento de novos ofícios, vemos que não havia realmente saída para as mulheres que não optassem pelo casamento. (No entanto, antes do Renascimento, algumas mulheres conseguiram tornar-se artistas dentro de portas pois a actividade conventual era propícia aos trabalhos artísticos. Muitas religiosas foram iluministas, e há mesmo o caso de uma escultora, conhecidas e apreciadas). Por mais difícil que seja aos leitores do Belogue, a verdade é que uma mulher saia de casa dos seus pais para casar, para ir trabalhar para outra casa quando a família não tinha posses, para o convento ou então para, segundo a época, se desgraçar. Dou aqui o exemplo de três mulheres. As escolas de humanistas como a de Vittorino da Feltre recebiam tanto raparigas como rapazes, mas era impossível a uma rapariga que demonstrasse interesse prosseguir os seus estudos. Houve duas excepções: Isotta Nogarola e Cassandra Fedele que tentaram ser levadas a sério, mas os homens, mesmo os intelectuais com quem privavam, ficavam tão admirados com a sua inteligência, aliada à graça feminina e à própria feminilidade em si, que as viam como mitos. Não eram levadas a sério. Tanto que quase não tinham com quem trocar ideias. Cassandra Fidele, que uma vez ameaçou deixar Veneza para se tornar qualquer coisa de útil na corte de Espanha, foi impedida porque Veneza queria que ela continuasse a ser qualquer coisa de inútil lá. O terceiro exemplo é o de Cecília Gonzaga, filha do duque de Mântua. Frequentou a escola de Vittorino da Feltre e destacou-se entre os melhores alunos. Tinha vontade para continuar a estudar e era boa nos estudos, o professor apoiava-a, mas foi obrigada a ingressar num convento por se ter recusado a casar com o pretendido, combinado previamente com o pai. Foi escoltada até ao convento pela família e pela cidade. Como podemos ver, todas estas mulheres eram de extractos sociais elevados e como veremos, só vingou no mundo da arte a mulher que fosse oriunda de família com posses e minimamente liberal, ou que fosse oriunda de uma família de artistas onde o "liberal" já está implícito. Darei alguns exemplos de mulheres artistas embora os nomes como Sofonisba sejam escassos uma vez que o número de mulheres artistas era também escasso.
Sofonisba, a Privilegiada (1532-1625) Nascida numa família nobre, tinha ascendência cartaginesa, Sofonisba sempre foi influenciada pelo pai a pintar. Como a mãe morreu cedo, foi ele quem criou as seis raparigas e um rapaz. Das seis raparigas, quatro foram pintoras (fala-se também da sua irmã, Lucia Anguissola), mas Sofonisba foi sem dúvida quem se destacou e quem conseguiu deixar nome e reputação internacional como pintora. Primeiro foi discípula de Campi, o que abriu o precedente de deixar os mestres aceitar alunas. E depois começou a pintar e a relacionar-se com outros pintores como Miguel Ângelo, que lhe enviou alguns desenhos que ela copiou e devolveu para que o mestre pudesse fazer a sua crítica e já no fim da sua vida foi visitada pelo ainda jovem Van Dyck que dela recebeu conselhos e um desenho (que hoje se encontram entre os apontamentos do artista). Para além de ter sido uma pintora prolífica (existem cerca de 50 obras que lhe são atribuídas), foi uma das primeiras a destacar-se como retratista, algo que fazia muito bem, pois compreendia exactamente a importância da posição dos dedos das mãos do retratado, que indicavam a sua condição social.

Sofonisba Anguissola
Self Portrait
1554
Kunsthistorisches, Viena

Lavinia Fontana, a Esquecida (1552-1614) Esta pintora recebeu formação do seu pai Próspero (como vemos, mantém-se a matriz: uma mulher artista ou nasceu numa família abastada, ou nasceu numa família com tradição artística). Próspero Fontana era um artista já conhecido e com algum sucesso em Roma e Florença. Seria talvez um pintor sem conflitos e por isso a razão do seu sucesso, mas também a razão do seu trabalho ser hoje desconhecido. Lavinia foi conhecida pelas suas pinturas de temas religiosos, mas a fama chegou quando resolveu enveredar pelo retrato de senhoras bolonhesas da nobreza. Quem melhor que uma mulher para compreender outra mulher? Um homem, claro! Neste caso Lavinia teve sucesso porque compreendia o valor dado pelas mulheres aos seus adereços (em brasileiro, quando uma mulher se arranja, se "produz" diz-se que ela está "toda montada", o que faz sentido porque quando chegam a casa desmontam-se: tiram as pestanas falsas e as pinturas da cara, tiram as unhas postiças e os acrescentos de cabelo, tiram os saltos altos e ficam desmontadas) e porque sabia que todo o cerimonial e importância dada ao penteado, às jóias, ao olhar, aos adereços, ao vestido, fazia parte da condição de ser mulher. Sabia que a mulher não estava montada, mas estava escudada. Enquanto Sofonisba teve o mérito de ser a primeira mulher pintora a atingir êxito internacional, Lavinia foi a primeira mulher em Bolonha a conseguir singrar na arte e talvez tenha sido mais profícua que Sofonisba porque são-lhe atribuídas cerca de 135 pinturas. Mas o mais importante é que Lavinia conseguiu aquilo que até aí estava destinado aos homens. Enquanto um homem recebia encomendas públicas e privadas, uma mulher só recebia encomendas privadas: o retrato de uma amiga da família, uma pintura para a sala do senhor não-sei-quê... A partir de Lavinia as mulheres passaram a receber tanto encomendas públicas, como encomendas privadas, e isto inclui a Igreja, sim senhor, que era avessa a outro papel para a mulher que não o de mãe ou de prostituta.

Lavinia Fontana
Self-Portrait at the Spinet
1577
Accademia di San Luca, Roma

Artemisia Gentileschi, a Revoltada (1593-1651) Artemisia, como podem deduzir pelo apelido era filha do conhecido pintor Orazio Gentileschi e foi com o pai que aprendeu a pintar, em Roma onde nasceu. Há um aspecto da sua vida que marca a arte de Artemisia e que não podia deixar passar em claro, apesar de me opor à ideia de que as mulheres artistas levam para a arte tudo o que vivem, porque penso que isso também acontece com os homens artistas. No entanto, enquanto aprendia com o pai, Artemisia foi violada por um discípulo do pai, Agostino Tassi, quando tinha 19 anos. O pai de Artemisia, processou Tassi, mas num processo algo estranho, quem acabou torturada e "inspeccionada" nas "partes baixas" (para se provar a violação, dizem) foi ela e ele foi dado como inocente. Seja qual for a verdade, nos seus quadros há uma violência e uma revolta principalmente em obras que geralmente não levantariam qualquer polémica se pintadas por homens. Dois exemplos disso na sua pintura: Judith Beheading Holofernes e Susanna and the Elders. No primeiro quadro vemos como Artemisia pinta Judite, com toda a frieza a cortar a cabeça a Holofernes, o que até pode ter sido terapêutico para Artemisia. Já no caso de Susana e os Velhos, era concentrou-se na vulnerabilidade da mulher nua cujo banho foi interrompido por dois velhos que a violaram. Ora, a mesma cena contada inúmeras vezes por pintores concentra-se no momento em que Susana descobre que está a ser observada, ou mesmo quando é surpreendida pelos velhos, mas sempre de um ponto de vista sensual e talvez, masculino. Artemisia foi considerada a Caravaggio feminina por seguir o mesmo tipo de pintura de sombras de Caravaggio. De Roma, e um mês após o processo, mudou-se para Florença e foi aí que conseguiu alguma calma e sucesso para prosseguir com as suas pinturas, chegando a receber o apoio da família Médicis. E (tcharan!), em 1616 foi aceite na Academia de Desenho, apesar da pouca frequência feminina e nenhuma aceitação por parte dessas instituições. Em seguida foi viver para Nápoles, e viveu até ao fim dos seus dias a pintar graças a encomendas de retratos e temas religiosos

Artemisia Gentileschi
Self-portrait as a Female Martyr
1615
Colecção Privada

Josefa d'Óbidos, (1630-1684) Josefa d'Óbidos nasceu Josefa de Ayala, em Sevilha, embora o pai fosse português (razão pela qual a adoptámos). Foi graças ao pai que também era pintor, de seu nome Baltasar Gomes Figueira, que Josefa começou a pintar. Depois de permanecer algum tempo em Espanha, veio para Portugal onde conduziu a sua vida e carreira como pintora. Foi sua opção de vida nunca casar ou ter filhos (nessa altura uma coisa não acontecia sem a outra). Apesar de a conhecermos bem dos seus cordeiros místicos, era na realidade bastante versátil, indo das naturezas-mortas aos retratos, temas religiosos e alegorias.

Josefa d'Óbidos

Mary Cassatt, a Calma (1844-1926) Mary Cassatt que não nasceu numa família de pintores, mas numa família norte americana abastada, desde cedo teve de enfrentar a oposição familiar face à sua escolha artística. Mas tinha do seu lado o facto de ser uma família abastada e durante a sua adolescência Mary pôde viajar pela Europa e tomar contacto com as obras dos grandes Mestres. Mesmo com a oposição do pai, a pintora foi estudar para a Academia de Belas Artes de Filadélfia, mas não agradada com a forma como as mulheres eram postas de parte e após nova discussão com o progenitor, mudou-se para Paris com uma corte composta pela família. Já em Paris teve aulas particulares e decidiu-se a pintar no Louvre juntamente com muitos outros artistas que tinham autorização do museu para o fazer. Era muito raro aceitarem mulheres. Esse espaço, pelo grande número de artistas lá presente, era um espaço de troca de ideias e privilegiado para fazer novos conhecimentos. Ela distingue-se dos outros porque apesar da sua formação clássica, teve sempre uma visão própria da arte, embora profundamente influenciada pelo Impressionismo. Aliás, Degas abriu uma excepção e convidou-a para expor junto dos homens no Salão dos Impressionistas. E se hoje virem as colecções dos museus americanos, elas têm uma parte considerável de obras impressionistas pois Cassatt estabeleceu a ponte entre Paris e Nova Iorque no que à arte diz respeito. Apesar dos seus temas tão maternais, apesar de retratar cenas familiares e de ter revisto o quotidiano feminino na pintura, Mary Cassatt nunca casou e não teve filhos, o que quer dizer que podemos pintar mesmo o que não conhecemos.

Mary Cassatt
Self Portrait
1880
National Gallery of Art

Berthe Morisot, a Burguesinha (1841-1895) Sem nenhum sentido depreciativo, o cognome a burguesinha aparece aqui (os cognomes foram dados por mim e correspondem a ideia com que fiquei das artistas e da obra delas) pois Berthe nasceu no seio de uma família francesa liberal e culta da burguesia. Não possuía ligações privilegiadas, mas chega à pintura pela mão de Corot. Quando expôs no Salão de 1867 as suas obras impressionaram Manet que lhe faz a proposta: e que tal posar como modelo para Le Balcon? Curioso é que Manet não lhe pede "e que tal dares a tua opinião sobre as minhas obras". Ele convida-a para ela fazer o seu papel de mulher, não o de pintora. Seja como for, não é com Manet que Berthe se encanta, embora o tenha encantado na forma como posou, mas sim com o irmão de Manet, Eugene, com quem acabaria por casar. Berthe é um pouco o contrário de Mary: Mary gostava de viajar, opôs-se à família, nunca casou e teve algum sucesso. Berthe casou, era dedicada à família, pintou a maternidade e a infância a pastel e aguarela, nunca deixava a sua casa, nunca encontrou interesse para além daquilo que estava ao seu alcance e as críticas ao seu trabalho não eram muito favoráveis e o sucesso comercial nunca chegou.

Edouard Manet
Berthe Morisot
1872
Colecção Privada

Camille Claudel, a Injustiçada (1864-1943) Relativamente a Camille Claudel, o que vou escrever aqui vai contra tudo o que se pode ler sobre ela. Chamei-lhe a injustiçada porque vai ficar para sempre, excepto em alguns meios, associada a Rodin como a discípula que mais tarde se tornou amante e que enlouqueceu. Mas a verdade é que Camille tinha aquilo que poucas tinham e que Rodin tinha em défice relativamente a ela: talento. Apesar de não pertencer a uma família abastada nem com raízes artísticas, todos os irmãos Claudel foram artistas: Paul Claudel foi escritor, Camille foi escultora e Louise foi música. Em criança teve poliomielite, mas sobreviveu e acabou por se tornar numa mulher muito bonita. Quando foi para Paris, incentivada pelo pai, para estudar escultura teve como mestre Auguste Rodin. Ao contrário do que é dito na Wikipédia, Rodin não era um génio. Em jovem tinha tido dificuldades de aprendizagem (a escrever e a ler) e tinha de fazer um grande esforço para compreender o que lhe era ensinado. Nada isto impedia Rodin de ser no futuro um bom escultor, um excelente escultor, mas se é verdade que um artista não se faz só na escola, também é verdade que Rodin foi recusado por três vezes na Escola de Belas Artes em Paris. Camille era tudo o que ele precisava: como tinha grandes dificuldades em acabar as obras, Rodin aproveitou o grande talento de Camille para esculpir mãos e pés (as partes mais difíceis de desenhar do corpo humano). Tanto que, numa exposição organizada por Rodin com obras de Camille ela teve tal sucesso que ele mesmo se encarregou de afastá-la da ribalta. E o que é ideal para isso? Torná-la submissa, tê-la por perto, fazer dela sua amante (o que não era um sacrifício porque ela era talentosa e bonita). No entanto Rodin nunca largou em definitivo a sua companheira Rose Beuret. Quando finalmente se decide, Rodin decide-se por Rose, o que deixa Camille arrasada. Ela adorava-o (apesar de ter que trabalhar para ele e para a coroa de louros dele) e tinha deixado a família para ir viver com ele. Passou maus momentos a que alguns chamaram loucura, mas que acho perfeitamente compreensíveis. Esteve num hospício onde pôde continuar o seu trabalho, mas acabou perseguida pelos fantasmas da sua vida com Rodin. Sentia que ele se ia apoderar das suas obras quando ela morresse. Sentia que ele já podia fazer isso pois era um artista consagrado e ela, não obstante as críticas muito favoráveis, o imenso talento reconhecido, era tido como uma louca preterida. Não estava longe da verdade com este medo de que Rodin se apoderasse das obras. Há obras que ainda hoje estão a ser "re-atribuídas" pois pensava tratar-se de originais de Rodin, mas foram na realidade realizadas por Camille.

Camille Claudel

Frida Kahlo, a Rebelde (1907-1954) A história de Frida Kahlo é conhecida de toda a gente. Se não viram o filme, foram ver a exposição no CCB. Além disso o filme era com a Salma Hayek, por isso toda a gente foi ver. Não posso dizer muito que o filme não tenha dito já: nasceu no México, mas aos quinze anos foi vítima de um acidente no eléctrico onde seguia. Foi de tal forma violento que durante 29 anos foi submetida a 35 operações (chiça!) e apesar de ter conseguido levantar-se da cama alguns anos mais tarde, sofreu sempre muito com as dores. Isso marcou a sua pintura, tanto a dor física quanto a dor psicológica, bem como a mágoa de não poder ter filhos. Mas o que a torna especial é que ela combina o folclore mexicano com aspectos e simbolismos da religião católica, mais até, a meu ver, do que a sua relação com Rivera. Se é certo que ele a traiu, ela não devia ser mulher de se ficar e deve ter dado a mesma paga.

Frida Kahlo
Self Portrait with Necklace
1933
El Museo del Barrio

Tamara Lempicka, a que teve mais sorte que juízo (1898-1980) Está certo, não é um bom cognome e é injusto face às outras pois baseia-se na vida sem preocupações de Tamara. As suas antecessoras, algumas, também levaram vidas muito simples, mas Tamara Lempicka irrita-me pelo seu estilo e por ter pintado sem sair do seu meio. Veio de uma família polaca rica e não teve grandes problemas na vida excepto quando o seu marido foi detido, mas a influência de Tamara fizeram a vez da diplomacia. Foi para Paris onde estudou com Maurice Dennis e chegou a expor. Nos seus quadros fala abertamente da sua bissexualidade e da sua atarefada vida social, o que me irrita um pouco. Sinto-a como uma pintora mais preocupada em expor, para o comum dos mortais, um mundo de luxo e luxúria ao qual não teremos acesso, um mundo estranho, bizarro, de liberdades sexuais inimagináveis na altura, do que em evoluir. A verdade é que nunca saiu do tema e do estilo já aqui descrito por “Picasso encontra El Greco no Chrysler Building”.

Tamara de Lempicka
Self Portrait
1925
Colecção Privada

Muitos nomes ficaram por referir. Esta pequena lista que se segue é apenas um apontamento. Sei que nem nesta lista é feita justiça pois não é uma lista compelta:

Properzia de Rossi (1490-1530), Barbara Longhi (1552-1638), Rosalba Carriera (1675-1757), Angelica Kauffmann (1741-1807), Marie Louise Élisabeth Vigée-Lebrun (1755-1842), Marguerite Gérard (1761-1837), Anna Claypoole Peale (1791-1878), Julia Margaret Cameron (1815-1879), Rosa Bonheur (1822-1899), Lilly Martin Spencer (1822-1902), Eva Gonzales (1849-1883), Cecilia Beaux (1855-1942), Florine Stettheimer (1871-1944), Sonia Delaunay (1885-1979), Georgia O'Keeffe (1887-1986), Barbara Hepworth (1903-1975), Maria Elena Vieira da Silva (1908-1992), Louise Bourgeois (1911), Meret Oppenheim (1913-1985), Diane Arbus (1923-1971), Niki de Saint-Phalle (1930-2002), Hilla Becher (1934), Paula Rego (1935), Susan Hiller (1940), Rebecca Horn (1944), Barbara Kruger (1945), Marina Abramovic (1946), Sherrie Levine (1947), Mona Hatoum (1952), Nan Goldin (1953), Cindy Sherman (1954), Kiki Smith (1954), Rineke Dijkstra (1959), Catherine Opie (1961), Sarah Lucas (1962), Pipilotti Rist (1962), Rachel Whiteread (1963), Tacita Dean (1965), Elizabeth Peyton (1965), Vanessa Beecroft (1969), Jenny Saville (1970)


- o carteiro -

[1]
Pepsi muda de logotipo

segunda-feira, outubro 20, 2008

- original soundtrack -
especialização, uhduduba...

If you peruse the people in the news,
The people that the magazines refer to.
You'll find that they are naturally soigné,
The special ones that all of us refer to.
They've each a trait that seems to state first raters.
That separates them from the small potaters.

Maria Callas
Is booked in Dallas.
The carpet's rolled out and they're sold out clear to the skies.
Specialization, specialization.
They'll love your high notes if
If you specialize.

When Elvis rotates,
Each creep notates.
It may look funny,
But the money's what it supplies.
Specialization, specialization.
You'll meet the colonel if
If you specialize.

Salome did it with veils.
Abe Lincoln did it with rails.
Toledo did it with scales
The Chinese built that Wall.
Specialized star.
Marc Clement gives gals the tremors.
This Casanova sure has the roverest eyes.
Specialization, specialization.
You'll rule the barnyard if
If you specialize.

The Farrows did it with springs.
And Darwin did it with links.
Some robbers did it with Brinks.
Carnegie used a Hall.
Specialized star.
Van Cliberen caused us a high burn.
While we were blushin'
Some Russian gave him the prize.
Specialization, specialization.

They'll give you medals if,
They'll love your high notes if,
You'll meet the Colonel if,
You'll rule the barnyard if,
If you specialize!
I specialize.

(Specialization, Marilyn Monroe da banda sonora do filme Let's Make Love)
- não vai mais vinho para essa mesa -

eu sei que ainda é cedo para fazer efeito, mas pelo preço que foi podia ter receitado antes cannabis.

- ars longa, vita brevis -
hipócrates

antes e depois ou como "this woman gives me the creeps", ou como "todas as obras da Tamara Lempicka assustam-me, metem medo, não sei explicar. Ainda que a pintora nos acene com a bandeira das liberdades sexuais numa altura em que a igualdade de géneros não era bem vista, ainda que diga que apenas mostra o lado excêntrico da classe social a que pertencia e onde essas mesmas liberdades eram mais comuns, ainda que faça a apologia das relações homossexuais, o resultado final é assustador. Antes mil Josefas d'Óbidos, mil Marys Cassatts, mil Berthes Morisots, cerca de duas mil Artemisias Gentileschis e 500 Sofonisbas Anguissolas do que esta... este... resultado de um encontro entre Picasso e El Greco no Chrysler Building. Verdade seja dita que esta colecção Dior foi pelo mesmo caminho e que não a subscrevo. Estou desiludida com o Galliano na Haute Couture da Dior para o Outono/Inverno de 2008 e muito satisfeita com o costureiro na colecção de pronto-a-vestir para o Outono/Inverno deste ano, bem como com a de pronto-a-vestir da Primavera do próximo ano. Benditas mini-saias!

Tamara de Lempicka
Portrait of Romana de la Salle
1928
Collection Wolfgang Joop



Dior
Colecção Couture Outono/Inverno 2008



- o carteiro -

um antes e depois:
Há algum tempo que ando a tentar perceber onde existe - porque sei que existe - uma diferença entre a arte católica e a arte protestante, principalmente após o Concílio de Trento. Já aqui tinha falado de um exemplo: “O Anjo ditando o Evangelho a São Mateus” de Caravaggio e o “Anjo ditando o Evangelho a São Mateus” de Rembrandt. Nota-se que no quadro de Rembrandt é o santo quem decide, é o santo que pensa e que escreve enquanto no caso do pintor italiano e numa versão perdida (que é a melhor das duas de Caravaggio) o anjo pega na mão do santo e escreve por ele. São Mateus é retratado como um homem velho, com uma tarefa para executar de exigência superior às suas capacidades e mostra-se desorientado e até sujo. Uma das diferenças entre a arte católica e a arte protestante está exactamente aqui: o Protestantismo que acreditava que cada um de nós era responsável pela sua existência terrestre e que quando colocados no mundo, sem pecado, não era Cristo que respondia pelos nosso pecados futuros através da sua morte, mas sim que a ausência de pecado deveria ser um incentivo para que cada fiel lutasse por uma vida impoluta.

Caravaggio
St. Mathew and Angel


Rembrandt
St. Mathew and Angel
1661
Louvre, Paris, França
Mas sabia que havia mais exemplos pois a 25ª sessão do Concílio de Trento foi dedicado à arte, mas principalmente à representação de santos e de Cristo. Apesar de acusada de abusar do culto de imagens, a Igreja Católica enfatizou, dentro de certos limites, o fervor religioso icónico. As directivas pós Concílio de Trento não permitiam imagens que fizessem apelo aos sentidos, ou despertassem cobiça ou luxúria. No entanto, olhando para duas obras, sobre a mesma temática, realizadas por artistas diferentes ou pelo mesmo artista, mas antes e depois do Concílio de Trento, não parece haver diferenças. Descobri no entanto este Cranach que ilustra o espírito que se vivia na época, anterior ao Concílio e que opunha protestantes e católicos. É o típico quadro da Reforma que serve neste caso os interesses do Protestantismo. Chama-se "As vinhas do Senhor" e não é fácil de encontrar. O autor dividiu o quadro em duas partes: do lado esquerdo está um grupo que representa a Igreja Católica do século XVI e do lado direito, um grupo que representa a recém-formada Igreja Protestante. O grupo católico de vestes impecáveis puxa as vinhas pela raiz, arranca-as, queima-as e preenche o espaço deixado pelas vinhas com pedras. O grupo da direita, o grupo de protestantes de onde se destaca Lutero, rega as plantas. Não é uma pintura dentro do espírito Ecuménico, mas na altura, o que é que isso importava? Esta pintura mostra que a arte protestante estava ligada mais ao povo, à pessoa comum e às classes trabalhadoras do que a arte cristã. Por outro lado, assume uma opinião arrojada acerca da Igreja Católica ao dar a entender que as suas acções para angariar fiéis e para os manter são mais audaciosas. A arte da Igreja Católica não fala por meias palavras: uma Madonna é uma Madonna, mesmo quando está a ser representada por uma santa. O ambiente geral é sempre igual não havendo por isso dúvidas se estamos perante arte católica ou protestante. No caso do Protestantismo, na arte qualquer mulher pode representar a Virgem.

Cranach
The Lord Vines
Stadtkirche

Vejamos “The Milkmaid” de Vermeer. Com a janela aberta e a luz a incidir nela, poderia ser uma imagem do amor maternal que cuida de nós, que nos alimenta. É uma mulher simples que não mostra vaidade nem tem nenhum traço especial, mas que está a desempenhar as suas funções e é através da graça de Deus (Deus que concede trabalho ao homem), segundo o Protestantismo, que encontramos Cristo. Na arte católica a pessoa não se retrata, ninguém se revê no que ali está porque os ideias de beleza e as atitudes são inalcançáveis e não são humanas. Como toca o extraordinário a arte católica era essencialmente uma arte dos sentidos em que tudo tinha que ser grande e abrangente, tudo tinha de ser em larga escala. Já o Protestantismo promoveu a proliferação das gravuras o que permitiu que cada pessoa tivesse o seu manual e que a religião fosse algo mais privado.

Johannes Vermeer
The Milkmaid
c. 1658
Rijksmuseum, Amsterdão

Quando o Protestantismo começou a ser adoptado pelos diferentes países, a mesma religião, quer pela crítica que fazia à Igreja Católica, quer pela própria natureza das suas regras, diminuiu a produção artística e restringiu-a às pinturas de paisagens, retratos e pinturas de cenas do quotidiano. Não obstante, a Reforma Protestante foi responsável por uma vaga iconoclasta pois as pessoas achavam que as imagens promoviam uma certa idolatria que distraía a atenção e o coração daquilo que era verdadeiramente importante. Em algumas igrejas as imagens foram mesmo removidas e o que aconteceu nos países protestantes foi que a Igreja deixou de patrocinar obras de carácter religioso, ficando a sua execução a cargo e responsabilidade do artista ou de outras instituições. Mas nas igrejas em que isso não aconteceu, vemos que existe uma diferença importante, ao nível da imagem, no altar. A Igreja Católica e a Igreja Protestante divergiam num dogma que era o da transubstanciação; ou seja, católicos acreditavam que o pão e o vinho da Última Ceia se tinha transformado em corpo e sangue de Cristo, não acontecendo o mesmo com o Protestantismo. Por isso, em altares protestantes é comum estar exposta uma Última Ceia para lembrar aos fiéis que são apenas alimentos: no seu contexto esta é uma imagem forte e coerente porque mostra apenas 13 homens sentados a uma mesa a comer pão e a beber vinho. Para protestantes foi a Última Ceia de Cristo e não o momento em que o pão e o vinho se transformam em carne e sangue. No caso dos altares cristãos o que vemos invariavelmente é um crucifixo pois no momento da crucificação já Cristo deu a vida por nós e por isso já o acto está consumado.
Há exemplos que devemos dar. Brueghel, por exemplo, foi um pintor que tanto exerceu a sua actividade tendo a vista a encomenda católica como a encomenda protestante. Notamos aliás um gosto pelas paisagens em todo o repertório de Brughel. Mas mesmo quando não pinta uma paisagem, Brueghel pinta com um grande desprendimento pelas convenções do Catolicismo. Veja-se o exemplo de "Peasant Wedding" em que está retratada uma festa de casamento dentro de uma taberna (talvez), com as pessoas bastante felizes, a comer e a beber e não há nada naquele quadro que nos indique a presença de uma religião seja ela qual for. Não há qualquer alusão ao casamento católico. Esta pintura mostra, tal como a anterior que o que a Igreja pretendia era dar o exemplo através de pessoas reais. Obviamente a obra não foi comissionada pela Igreja, mas insere-se no espírito do Protestantismo, que tal como o do Catolicismo, se estendia a todas as áreas da vida dos praticantes. O Protestantismo achava que, uma vez que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, quanto mais humano fosse Cristo, maior a identificação do homem com este.

Pieter Brueghel, the Elder
Peasant Wedding
c. 1567
Kunsthistorisches Museum, Vienna

Outro exemplo da arte protestante em resposta à arte católica é esta gravura de Hans Baldung Grien onde vemos como Martinho Lutero o fundador da Igreja Luterana é retratado como um santo. Ora se os protestantes não faziam a apologia das imagens e achavam mesmo que se fazia a idolatria do divino através das mesmas, o retrato de um membro do protestantismo, além do mais, seu fundador, nestes preparos, é a negação da pregação protestante. Já aqui tínhamos falado também do episódio de Veronese que se viu alvo da Inquisição por a sua Última Ceia retratar anões e bêbados e pessoas de má índole. O pintor teve mesmo de mudar o nome do quadro para "Festim em Casa de Levi" que não deixando de ser um episódio bíblico, é um episódio bíblico menos conhecido e não é fulcral para o Cristianismo como a Última Ceia. Pode dizer-se que o Protestantismo dessacraliza a arte para chegar mais facilmente às pessoas, enquanto o catolicismo enfatiza o sacro dentro da arte como forma de atrair as pessoas.

Hans Baldung Grien
Portrait of Martin Luther
1521

Já depois do Concílio de Trento, quando a Igreja se debatia com a tentativa de regulamentar a arte pós tridentina e conjugá-la com os ideias católicos a “Lamentação” de Scipione Pulzone é uma obra importante pois mostra essa luta. Cristo tem um corpo e um rosto perfeitamente humanos. Não está num sofrimento sobre-humano nem tem no rosto a expressão de alívio. É apenas um homem morto e esta é apenas uma lamentação sem exageros, sem corpos retirados da cruz quase com roldanas, sem corpos nus.

Scipione Pulzone
Lamentation
1591
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque