quinta-feira, julho 31, 2008

- o carteiro -


Albrecht Durer
The Large Turf
1503

Graphische Sammlung Albertina, Viena

O título desta aguarela em Inglês engana bastante pois quando traduzido soa a qualquer coisa como “A grande trufa”. Já estava a pensar na aguarela de sonho de todos os chefs de cozinha quando percebi que o “turf” não era de trufa, mas de tufo de erva. Olhei e de facto não vi a trufa, nem o porco que deveria achá-la, mas vi o tufo que aparentemente não tem nada de especial, mas pode dar um bom post. Por algo simples: é do tipo de trabalho de que quase nada se pode dizer, mas bem observado, tem muito que se lhe diga.

O que esta aguarela tem de bonito e bom é que não é “uma grande coisa”: não é uma grande pintura de época, não há retrato humano, nem contexto, nem objectos, nem alegorias, nem artifícios… Não há nada disso. É como o desenho de uma mão, a linha negra numa folha de papel branco ou o contorno de um javali numa pedra. São desenhos que adquirem vida por si, sem nada à sua volta. Há outros que não se tornam obras de arte, nem proporcionam a quem os vê a sensação de estar a experimentar a vida a latejar a cada olhar. Elementos em brasões, por exemplo, que estão fora do seu contexto mas que adquirem importância e significado sozinhos podem também ser referidos, uma vez que nada na natureza existe sem um suporte, sem o exterior, sem o resto à volta. Podemos no entanto extrair da natureza os elementos que nos interessam e isolá-los na nossa imaginação.

Apesar de se tratar de uma simples aguarela – subvalorizadas a maior parte das vezes -, é uma obra que não deve muito ao seu tempo artístico pois é uma obra mais próxima do realismo técnico do que do Renascimento inicial. Não é uma obra do período realista, não mostra dissonâncias sociais nem tenta fazer essa crítica. Também é sabido que o desenho botânico, devido às idiossincrasias da disciplina a que se submete, tem de ser realista. Isto quer dizer que tem de ser fiel, tanto quanto for possível ao que é observado. Visto esta ser uma pintura de “entretenimento” (Dürer não tem a intenção de estudar as trufas), o detalhe poderia ser menor, mas o que esperar de um homem que foi transformou em arte tudo o que tocou? (Eu hoje estou tão benemérita… Ele é Matisse, ele é Dürer… Daqui a nada estou a dar o benefício da dúvida ao El Greco. Nãããã!). Em cada folha e em cada planta desta aguarela foi colocado um cuidado especial e cada um pode ser vista em separado pois todas têm um nível de qualidade que as torna independentes e que identifica a espécie a que de facto pertencem, pois esta aguarela retrata espécies reais: margaridas, dentes-de-leão, gerânios, milefólios e amores-perfeitos. As diferentes plantas não se encontram individualizadas, separadas visualmente, mas misturadas tal como se encontram na Natureza: entrelaçadas, revoltosas e caóticas. O tufo central está assimétrico: se repararmos não está bem ao centro da composição e o resto de vegetação que o rodeia não é tão vasto à direita como é à esquerda. E com isto não ficamos com a sensação de estar a olhar para um arranjo floral, mas para um conjunto vivo e em mutação, uma massa da Natureza com identidade. No entanto a aguarela parece estar inacabada, pois na parte inferior do trabalho, o que era erva está rematado naquilo que a olho nu parece ser uma poça de água, mas é papel. Se repararem bem, no canto inferior esquerdo e no canto inferior direito não vemos a raiz do tufo, mas um pouco de papel e uma pincelada que não foi até ao fim do limite do suporte. Mais, do lado direito da aguarela a linha do horizonte aparece quase de imediato fazendo com que aquele pedaço de natureza pareça pouco natural.

É no fundo uma imagem dúbia, com muitas antíteses pois tem o melhor de duas visões: há nela a visão quase ecológica de Dürer, mas ao mesmo tempo o artista descarta essa visão tão ortodoxa para adoptar uma visão de livre interpretação. Tão livre que Dürer se esqueceu de pintar o resto da folha. Mas é justamente isto que com a desordem das folhas nos faz acreditar que Dürer pintou o que estava a ver e não o que a sua imaginação disse para pintar.

3 Comments:

Blogger João Barbosa said...

e o que eu adoro trufas!... mas não são, paciência

31/7/08 10:12 da manhã  
Blogger Belogue said...

Caro João Barbosa:

lamento, mas nunca provei.

1/8/08 12:24 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

turfa pode ser simplesmente aqui (e provavelmente é) a camada do solo envolvendo as raízes das plantas. o quadro é muito bonito, obrigada por meteres.

1/8/08 2:04 da manhã  

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