quarta-feira, fevereiro 13, 2008

- ars longa, vita brevis -
hipócrates

É comum em algumas pinturas flamengas do século XV, o tratamento de temas sacros, alguns conhecidos como meta narrativas, de forma secular. Também acontece que os mesmos temas sejam seculares e o gosto pelo quotidiano esteja presente, embora isso não suscite a mesma curiosidade como o contrário. Quadros como “Os embaixadores” de Holbein ou “Madonna and Child Enthroned with Saints” de Ghirlandaio constituem exemplos paradigmáticos da introdução de elementos da realidade e até perenidade humana em cenas mais ou menos sacras.

Hans the Younger Holbein
Jean de Dinteville and Georges de Selve (`The Ambassadors')
1533
National Gallery, Londres


Domenico Ghirlandaio
Madonna and Child Enthroned with Saints (pormenor)
1483
Galleria degli Uffizi, Florença

Se por um lado não podemos ficar alheios à tentativa de humanizar a temática religiosa por parte de artistas que eram, muitos deles, protestantes, também não convém obnubilar o facto de existir desde o século XIV um gosto cada vez maior e mais fundamentado pelo ónus do nosso post: as tapeçarias turcas e da Anatólia que eram pintadas como pano de fundo, mas enchiam e complementavam a pintura em questão. Veja-se o quadro de Jan de Bray em que a parte esquerda da pintura deixa em aberta a possibilidade do acontecimento de algo, a iminência do facto pelas cabeças voltadas e que é reforçado por esse espaço preenchido por tapeçarias.

Jan de Bray
The Regents of the Children's Orphanage in Haarlem
1663
Frans Halsmuseum, Haarlem

Mas a pintura de tapeçarias não era casual: ela correspondia a um conhecimento cada vez maior das diferenças entre estilos, épocas e técnicas de tapeçaria, um bem que começava a ser importado para esses países, vindo dos países islâmicos (principalmente de zonas como Konya, Sivas, and Kayseri já em 1271 2 1272) que faziam agora parte do rol de países descobertos e com os quais as trocas comerciais eram sempre profícuas. Um dos primeiros a introduzir as tapeçarias nos seus quadros foi Van Eyck, mas o que era pintado não correspondia a nenhum modelo já existente. Van Eyck não conhecia o significado dos desenhos e pintava portanto o todo do que via: o pormenor era mais fruto da sua imaginação do que do estudo das tapeçarias.

Jan van Eyck
The Madonna with Canon van der Paele
1436
Groeninge Museum, Bruges

Os italianos, devido à posição privilegiada de Veneza relativamente às trocas comerciais, foram no entanto dos primeiros a ter contacto com a peça em si. A pintura foi uma forma de perpetuar e manter vivas o desenho das tapeçarias islâmicas desde o século XIV. E para os venezianos as tapeçarias tinham um valor, eram um objecto de luxo categorizado numa hierarquia superior aos vidros, cerâmica ou couros. O correspondente italiano de Van Eyck pode ser visto na obra de Simone Martini, “Saint Louis of Toulouse Crowning Robert of Anjou as King of Naples” onde as tapeçarias que cobrem o chão têm motivos mais geométricos. E a prática continuou até ao século XVI, sendo mais evidente em pinturas flamengas, como já dissemos, mas igualmente visíveis em pinturas de mestres italianos. Foi aliás graças ao gosto pelo desenho cultivado pelos italianos que ainda hoje se conservam estudos pormenorizados dos padrões das tapeçarias que serviram de elemento decorativo nas pinturas da época. E a pintura de tapeçarias foi de tal forma importante e boa que quando as obras onde este elemento estava inserido começaram a ser estudadas, já no século XIX, foi possível observar que os padrões reproduzidos pelas pinturas retratavam de facto alguns exemplos de tapeçarias conhecidas. Por isso os padrões acabaram por adquirir o nome dos seus pintores: temos então o padrão Holbein, o padrão Bellini, Ghirlandaio, Crivelli e Lorenzo Lotto, entre outros. O padrão Lorenzo Lotto, por exemplo, surgiu após dois quadros do pintor onde é possível observar algumas tapeçarias: em “The Alms of Saint Anthony” e em “The Family Group”.

Lorenzo Lotto
The Alms of St Anthony
1542
Basilica dei Santi Giovanni e Paolo, Veneza


Lorenzo Lotto
Family Group
1547
National Gallery, Londres


Mais tarde, e num “antes e depois” que jamais veríamos não fosse esta investigação (porque eu não sei isto tudo, vou sabendo.), o padrão Lotto aparece na pintura de Sebastian del Piombo “Portrait of Cardinal Bandinello Sauli” (as carpetes eram um símbolo de status social nos retratos italianos desta época, um pouco motivados pela ideia de Lourenço de Medici para a cidade ideal), bem como em mais de 80 pinturas ocidentais posteriores a Lotto. Caracteriza-se por arabescos que se repetem até à exaustão e que são muitas vezes confundidos com elementos antropomórficos como animais ou plantas, o uso de amarelos em estruturas vermelhas bem como a subdivisão do seu próprio estilo em três outros (anatoliano, Kilim e ornamentado), cada um deles com características próprias. E a classificação dos padrões associada ao nome dos pintores é tal forma instituída que hoje muitas tapeçarias são classificadas segundo esse padrão nome.

Sebastiano del Piombo
Cardinal Bandinello Sauli, His Secretary, and Two Geographers
1516
National Gallery, Washington


Holbein também deu o seu nome a um tipo de padrão, um padrão geométrico constituído por octógonos e quadrados de tamanhos diferentes. Nos exemplos em que o motivo abre mais, notou-se que o efeito não era tão bom; ou seja, quando Holbein pinta o seu padrão com os motivos mais fechados o efeito produzido é melhor. Vários artistas foram influenciados pelos motivos geométricos dos padrões de Holbein, como Mantegna, por exemplo. Mantegna utilizou os motivos Kufescos (inspirados nos motivos árabes que são típicos nas tapeçarias da Anatólia deste período). Crivelli por seu turno fez uso da pintura de tapeçarias na sua “Annunciation with Saint Emidius” onde aplicou os octógonos embora este pintor tenha sido dos poucos que optou pelos motivos antropomórficos.

Carlo Crivelli
Annunciation with St Emidius
1486
National Gallery, Londres


Estas pinturas mostram como as tapeçarias e os tapetes em si eram objectos utilitários e não apenas objectos de luxo. Obviamente só as classes mais afortunadas poderiam auferir estes bens. Podemos ver isso nas partes da casa onde as tapeçarias são encontradas; ou seja, as tapeçarias estão rodeadas de outros objectos decorativos e utilitários de bom gosto e luxo. São comuns por exemplo nas Anunciações de traça toscana, acompanhadas de animais exóticos como pavões, constituindo quase por si só elementos iconográficos. A representação das tapeçarias na pintura proporcionava aos pintores a oportunidade de mostrar as suas qualidades no desenho de pormenor e na invenção do mesmo, na criação de padrões.

3 Comments:

Blogger AM said...

penso que as "carpetes" são uma forma de "assinatura" (...) do artista... uma forma de "exibir" o seu talento (e provavelmente de aumentar o valor comercial da obra e do seu autor...)
podia desenvolver melhor a relação entre (o desenho?) das carpetes e a cidade ideal? fiquei mais curioso que esclarecido

13/2/08 10:15 da manhã  
Blogger João Barbosa said...

viu a exposição no Museu de Arte Antiga?

13/2/08 11:05 da manhã  
Blogger Belogue said...

Caro AM:
quanto às carpetes serem uma forma de exibir a capacidade do artista, não tenho dúvidas e escrevi isso (acho que no último parágrafo). Quanto à outra questão, sabe-se que Lourença de Médici, no seu palácio da Via Larga em Florença possuia cerca de 32 tapetes do tipo descrito: tapetes que conferiam algum estatuto, tapetes orientais, de desenho exótico... Pois nenhum deles tinha sido alguma vez usado no chão. Claro que nessa época, sem aquecimento central os palácios eram "aquecidos" por tapeçarias que cobriam as paredes, mas já não estávamos na Idade Média, os tapetes nunca devem ter sido colocados no chão porque eram como obras de arte. 13 dos mais importantes tapetes nem estavam à vista, estavam numa sala onde lourenço recebia convidados importantes. Mais, os tapetes cobriam móveis, balcões, balaustradas (à semelhança do que ainda hoje acontece nas festas de aldeia). Mas esse facto modificou um pouco o aspecto da cidade. lamento se fiz passar a ideia de que os desenhos estavam relacionados com urbanismo florentino. é esta a minha explicação. sorry!

Caro João Barbosa:
sabe que essa não é a minha latitute e nem sempre temos oportunidade...

13/2/08 12:41 da tarde  

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