quinta-feira, janeiro 31, 2008

- ars longa, vita brevis -
hipócrates

Bosch
Tentações de Santo Antão
1505-1506
Museu Nacional de Arte Antiga
Antão era um homem abastado que por volta de 271, após a morte dos seus pais decidiu abdicar da sua fortuna, distribuí-la pelos pobres e partir para a Tebaida onde fundou muitos mosteiros. No fim da sua vida resolveu isolar-se no deserto para meditar, tal como Santo Estêvão, embora Estevão fosse estilita, e ai sofreu muitas tentações. A pintura de hoje, ainda que seja um sacrilégio, uma blasfémia alguém como eu, pouco documentada estar a falar dela, é “As tentações de Santo Antão”, de Bosch que se encontra no Museu Nacional de Arte Antiga em Lisboa. Responsabilidade dupla que descarto porque só falo do que gosto e até onde sei.

Bruegel
Tentações de Santo Antão
1556

Tal como Bruegel, Bosch pintou de uma forma simbólica, como se as suas pinturas fossem uma bíblia e com elas pretendesse dar a conhecer não a vida de Cristo e tê-la como exemplo, mas mostrar um pouco da “sua aldeia”. Também como Bruegel Bosch sabia que bastava pintar a sua aldeia, o seu espaço mais próximo com pertinência e chegava a vários mundos. Diz-se que tanto “O Jardim das Delícias” como “As tentações de Santo Antão” sofreram influencia de uma seita religiosa que teve origem no século XIII e nos séculos posteriores se havia desenvolvido e ramificado pela Alemanha, Holanda e Bélgica. A seita herética chamava-se seita dos Irmãos e Irmãs do Livre Espírito, ou adamitas e proclamava que para recuperar a inocência perdida após o pecado original era necessário recuar… até ao pecado original e repeti-lo no âmbito de um ritual. É pouco provável que tenha sido assim, até porque Bosch era um visionário que dificilmente se agarraria a esse tipo de crenças. Mais depressa veríamos Bosch numa seita que combatesse as seitas.

Bosch vai beber tanto a Idade Média (mais do que ao Renascimento), como vai beber às iluminuras da época, aos textos religiosos, ás esculturas e, tal como Bruegel, aos provérbios e expressões do seu tempo. A sua visão apocalíptica nas Tenatções de Santo Antão está relacionada com tudo isso e com a tentativa de mostrar os tormentos do outro mundo que o homem sofrerá se sucumbir ao pecado. Mas penso que a forma como pinta esse mundo horrível, esse mundo do além muito diferente da forma como Bruegel o anuncia se deve a um facto. Por esta altura muitas eram as pestes e pragas que assolavam a Europa. Quando se plantavam os cereais era bem provável que os mesmos não medrassem por completo e perante a ameaça de tempos difíceis sem comida e na impossibilidade de sair de casa por riscos de contaminação, os cereais fossem colhidos mais cedo do que era pretendido. O pão feito com esses cereais não era igual ao outro, era pão que não fermentava e ao ser comido, acabava por fermentar dentro do corpo humano o que provocava alucinações. Diz-se também que à falta de alimento se ingeria plantas com efeitos alucinogénios e por isso muitos pintores da Idade Média pintavam o verdadeiro mundo das trevas, mais do que aquilo que na realidade era, porque a noção e relação da Idade Média com a Idade das Trevas já está ultrapassada e hoje é sabido que a Idade Média até foi um período de alguma prosperidade. É também verdade de “As tentações de Santo Antão” foram pintadas já num período de alguma maturidade criativa e executiva do pintor e que por isso a sua pintura é mais solta, ousada e expressiva.
No painel das tentações cada figura tem uma razão de ser, cada figura está pintada para nos dar uma lição, para nos mostrar algo, todas elas são um símbolo ou aludem a um conceito. Todo o quadro fala dos tormentos de Santo Antão, mas na visão do cidadão comum que também pode passar por eles, uma vez que foi ficando na memória colectiva das gentes que no século XI na Europa uma epidemia havia sido curada graças ao fogo de Santo Antão. Pode estabelecer-se uma relação entre as visões de santo Antão devido ao tempo que viveu como ermitã e a identificação por parte do homem comum com essas visões quando se sofre na pele uma epidemia. O tríptico fala dos castigos físicos no painel esquerdo, de bruxaria no centro e dos excessos da comida e do sexo no lado direito.

Mais uma vez não poderei falar de todas as partes que constituem o tríptico, da mesma forma que não o fiz para os provérbios flamengos de Bruegel, mas posso falar de alguns. Por exemplo, neste pormenor das tentações vê-se três cavaleiros que representam os três reis magos, mas de uma forma irónica e maligna. Bosch parodiou o episódio colocando um deles em cima de um cavalo cujo dorso é um cântaro. A figura com cauda de peixe que está em cima do rato gigante anuncia o mal e segura uma criança que poderia ser o menino que os reis vão adorar.

O pássaro da preguiça tem este nome por causa do papel que traz no bico. Nele está escrito isso mesmo: “preguiçoso”. Além disso o pássaro tem uns patins, o que quer dizer que prefere patinar do que ter o trabalho de abrir asas e voar.

No painel central, bem no topo o protagonista, Santo Antão é carregado pelos céus no dorso de demónios, como se estes lhe estivessem a mostrar o seu destino.