sexta-feira, dezembro 21, 2007

- o carteiro -
Espelho meu, espelho meu, haverá alguém mais…
O retrato d’”O casamento dos Arnolfini” já é bem conhecido aqui no Belogue, embora os outros dois quadros não sejam. “O prestamista e a sua mulher” é o título de uma pintura relativamente conhecida (“muito conhecida”, não quero subestimar o conhecimento que os leitores do Belogue têm de pintura), e já o Santo Eligius foi uma surpresa. Elas têm em comum a origem geográfica da produção, já que a cronológica embora seja semelhante, não é a mesma: duas na primeira metade do século XV e uma no século XVI. São todas de artistas flamengos e em todas se nota o gosto pelo pormenor, pelo quotidiano da época e por mostrar esse quotidiano quer através de rituais ou actividades quer através de objectos. E o objecto que liga estas três pinturas (provavelmente ligará muitas mais, mas estes têm em comum esse gosto pelo pormenor), é o espelho.
O uso do espelho vem, na minha opinião da redescoberta no Renascimento do vidro doméstico, quer nas janelas, quer nas garrafas, sob a forma de cristal. É também aí por essa altura que se descobre o espelho vindo de Veneza. Como protestantes ou a viver sob o regime draconiano da Reforma, os artistas não podiam retratar determinadas cenas, como por exemplo, a morte de Cristo. A morte de Cristo era muitas vezes substituída pelas Vanitas, palavra esta que, como sabemos, quer dizer Vaidade. Talvez esta tenha sido a passagem para o uso do espelho, embora a explicação mais plausível seja uma mistura destas três: o espelho reflectia (esta é a altura da arte em que a arte é “espelho”; ou seja, reflecte algo) a realidade que os pintores pretendiam dar a conhecer e capacitava-os para a elaboração de pinturas mais pormenorizadas e mais ricas sob esse ponto de vista.
Entre as três pinturas a primeira onde o espelho foi usado como elemento fornecedor de mais informações sobre aquilo que não se via na pintura, mas que estava lá (só que de lado do observador), foi “O casamento dos Arnolfini”. Atrás dos noivos podemos ver um espelho pendurado na parede que funciona como ponto de fuga da composição: o nosso olhar dirige-se sempre para lá. Ele reflecte os nubentes, de costas (e isto é que torna “O casamento dos Arnolfini” tão importante, porque o quadro mostra um lado que até aí não era para ser mostrado. E fá-lo como se tudo decorresse numa caixa fechada, uma vez que não reflecte o observador nem esse palco aberto que é a pintura), o próprio pintor e talvez a testemunha para o casamento (ora sabe-se que nesta altura bastava um homem e uma mulher para um casamento se realizar. Não havia a necessidade de um elemento do clero). Para nos dar toda esta informação e mais ainda, o espelho não podia ser plano e por isso Van Eyck pintou-o convexo. Só um espelho convexo nos poderia mostrar como é o tecto e o chão bem como o que se passa no exterior e que se pode ver olhando pela janela. Neste caso o espelho, pela sua posição e por aquilo que reflecte, é tanto o ponto que suga a composição, como poderia ser o “olho de vidro” de uma parede por onde alguém espreita o quarto onde decorre a boda.

Jan van Eyck
Portrait of Giovanni Arnolfini and his Wife
1434
National Gallery, Londres


Jan van Eyck
Portrait of Giovanni Arnolfini and his Wife (pormenor)
1434
National Gallery, Londres

O segundo quadro é de um artista menos conhecido, mas que até nos traz uma temática nova: Santo Eligius (nome que provavelmente terá equivalente em português, mas desconheço qual seja), era um santo que trabalhava bem o ouro. Deverá ter sido essa a sua profissão em vida e o seu nome terá ficado ligado ao trabalho do ouro. No quadro de Petrus Christus (que herança de nome!) estamos igualmente na presença de um par de noivos que chega até ao santo com algum ouro com o propósito que este possa ser derretido e transformado em alianças, as suas alianças. Tal como no quadro anterior também aqui houve uma preocupação em mostrar ao pormenor o espaço e a acção que nele decorre usando para isso os objectos. Entre esses objectos encontra-se um espelho convexo, tal como em Van Eyck. Este espelho reflecte não o casal que está junto do santo, mas um rectângulo, uma moldura de janela por onde passam pessoas. E o pintor retratou exactamente o momento de passagem de algumas. Mas enquanto no quadro de Van Eyck o uso do espelho tinha propósitos mais profundos, neste apenas reflecte o exterior. É como se o pintor à guisa de mostrar o seu talento, não o tenha doseado e tenha pintado o espelho num acto de vaidade, para provar que era capaz, mas o espelho em si não tem a função do de Van Eyck. Funciona como símbolo da actividade, como talismã que protege o ourives da ganância dos seus clientes e como elemento de trabalho uma vez que aí, com vaidade, os clientes poderiam admirar-se a usar as suas jóias novas. Mais uma vez a Vanitas.

Petrus Christus
St Eligius in His Workshop

1449
Metropolitan Museum of Art, New York


Petrus Christus
St Eligius in His Workshop (pormenor)

1449
Metropolitan Museum of Art, New York

O último quadro é de Massys e mostra o Prestamista e a mulher a contar dinheiro. Há alguma lentidão de movimentos e embora não tenha postado o pormenor das mãos, se observarmos com atenção veremos que as mãos parecem cansadas e contam o dinheiro com uma delicadeza que não é própria de quem está habituado a trabalhar com ele. Há elementos de uma natureza morta feita com pessoas e que podemos ver no livro que a mulher desfolha, no espelho, nas próprias moedas, nos acessórios, nos vidros... O espelho reflecte aqui o mundo exterior e uma pessoa dentro do espaço. De facto este espelho muda a concepção inicial que fazemos da composição. O Prestamista e a mulher parecem enclausurados num compartimento pequeno pois os seus corpos ocupam toda a composição. Mas o espelho mostra que a divisão da casa é maior, uma vez que está lá mais alguém, talvez a rezar ou a desfolhar um livro religioso como a mulher do Prestamista. O espelho mostra também que se trata de uma casa rica com os vidros superiores decorados como vitrais e ainda vai ao ponto de revelar um pouco da arquitectura exterior que tanto pode ser a da casa como de uma outra habitação que desta forma identificaria um “bairro”.

Quentin Massys
The Moneylender and his Wife

1514
Musée du Louvre, Paris


Quentin Massys
The Moneylender and his Wife (pormenor)
1514
Musée du Louvre, Paris

3 Comments:

Blogger João Barbosa said...

Pois que gostei muito.
.
.
.
Não sei quem é o Santo Eligius... poderei ver no compêndio dos santinhos se corresponde a algum (são muito repetitivos nos tiques e nas poses). O problema é que são muitos santinhos.
.
.
.
se descobrir mando-lhe notícias.

21/12/07 10:05 da manhã  
Blogger AM said...

espelho meu
haverá algum blogue melhor que o seu?

21/12/07 12:25 da tarde  
Blogger Belogue said...

caro João Barbosa:
descobri, é Santo Elói, padroeiro dos ourives. Tenho aqui o dicionário dos santos, mas não me apetece estar a escrever a história toda. mas parece que é divertida, lida na diagonal...

Caro AM:
e o espelho partia-se...

21/12/07 2:07 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home