terça-feira, novembro 27, 2007

- o carteiro -

retalhos da vida de um município - a secretária, as filhas e a banda gástrica

Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a Vase
1888
National Gallery, Londres

Maria das Dores ficou viúva na hora certa que Deus a perdoe se é que isto tem perdão, se é que Deus perdoa e se é que a ofensora quer ser perdoada. Para o marido já estava na reserva, mas era ainda necessário educar as duas catraias que seriam de médicas para cima. Na verdade uma tornou-se médica e a outra ficou-se por delegada de propaganda médica, que não sendo a mesma coisa era como se fosse. Maria das Dores tinha começado carreira no partido: era secretária da escola, o marido pertencia ao partido, a princípio ela ia às reuniões para não dizer que não, para falar com as outras esposas, dar uns bitaites porque “as coisas assim não podiam ser”, controlar o seu gado não fosse alguma abelhuda querer ficar-lhe com o membro viril e a pensão, ainda arranjava mais alguém com quem dividir a herança, valha-nos Deus, bate na madeira. Na madeira. Isso não que é MDF e ainda dá mais azar. Madeira, isso, sim. Pronto.
E um dia o marido morre-lhe com um cancro na língua, um desgraçado que para o fim da vida e já sem língua ainda praguejava contra o sistema de Governo. Ela apanhou-lhe o discurso e o lugar no partido que em cidade tão pequena acabava por ser de grande importância. Ela era agora Dona Maria das Dores, viúva, mãe de duas raparigas, secretária da escola primária e segunda vogal da lista concorrente às eleições autárquicas do município pelo partido da oposição. E não é que na noite das eleições o partido ganhou! Como em terra de cegos, quem tem olho é rei, e em terra pequena também, o partido ficou-lhe grato e já instalado o novo executivo não tardou muito a que se instalassem as pessoas certas nos lugares certos: a filha do Sr. Orlando estava um pouco por toda a parte porque o rapaz não tinha canudo e assim ficava difícil, a filha da Dona Teresa da Tesouraria estava responsável pela Academia de Música porque tinha tirado o curso de Contabilidade e embora a Academia respondesse directamente à Câmara,… era um curso que dava sempre jeito, Chegou a hora da das Dores que foi presenteada com o espectacular, milenar, enigmático e muito desejado cargo de Secretária do Sr. Presidente. Depois dela entrou o sobrinho da própria que estava lá dentro como engenheiro alimentar a controlar o ar que passava muito depressa e o que passava muito devagar, e a filha do presidente que entrara para o lugar de psicólogo, aberto no ano em que a moça terminou o curso e que lhe permitia “auscultar as fragilidades da população”. A morte do marido dava jeito porque, não caminhando das Dores para nova como se disse ainda dava cabo de umas boas solas de sapatos, pelo menos assim o achava. E não lhe tendo querido mal em vida não achava mal o bem da sua morte.

Como achava que ainda fazia qualquer um gastar umas solas de sapatos dirigiu-se um dia nestes termos à secção do pessoal:
- Olha, podia falar contigo?
- Claro das Dores, diz.
- Eu queria saber se a ADSE comparticipa uma operação.
- Depende… Mas passa-se alguma coisa?
- Não. Quer dizer, tu sabes o meu historial. As minhas duas irmãs morreram com diabetes e de diabetes. Eu queria colocar uma banda gástrica e tirar o “avental”. Achas que eles comparticipam?
- Cirurgias estéticas não são comparticipadas.
- Não é cirurgia estética!
- És obesa.
- Eu não, desde quando é que eu sou gorda? Eu estou aqui para as curvas. Só precisava de afinar. Sabes que na minha posição, atender telefones e tal, a imagem é tudo.
- Não é comparticipada Maria das Dores.

Das Dores já toda ela dada a um sentimento que não se assemelhava nem à dor nem à piedade, que não tinha nada de cristão e estava mais para pecado mortal, disse à secretária estagiária quando a viu a telefonar para o Hotel Sol Azul:
- Que estás a fazer? E desligou-lhe o telefone.
- Eu estava a ligar para o Hotel Sol Azul como pediu o Senhor Presidente. Era para marcar um jantar com vinte e …
- Já sabes que essas coisa são comigo.
- Mas ele pediu-me.
- Ele pediu-te porque eu não estava aqui. Esses assuntos são comigo.
Vai daí, pega no telefone:
- Estou sim, presidência da Câmara de XXXXX. Aqui fala a secretária do Sr. Presidente. Olá como está. Sim, sim, adorei os bolinhos. Estava a pensar se neste fim de semana em que vai haver o jantar, se não me podia arranjar mais uma caixinha dos de côco… Oh claro, e o Hotel Sol Azul será sempre a minha referência para o Sr. Presidente.