terça-feira, abril 04, 2006

- o carteiro -
Carta ao leitor:
Kasimir Malevich
Suprematist Composition: White on White
1918
Museum of Modern Art, Nova Iorque

Padeço de um mal, um mal para o qual não há panaceia: necessito, sob pena da minha existência se tornar insuportável, de pelo menos uma hora diária de total silêncio ou/e solidão. Uma hora sem cumprimentos obrigatórios ou conversas habituadas, decoradas; uma hora sem a voz de seja quem for; uma hora a mexer no lóbulo da orelha; uma hora para almoçar e ler ao mesmo tempo; uma hora para fazer o sudoku e punir-me como entender por ter colocado duas vezes o número 8 na mesma linha; uma hora para a mudez; uma hora para a nudez; uma hora para observar se quiser ou se não quiser; uma hora para os meus “alfinetes”; uma hora para não ter de ser nada que desejem que eu seja. É claro que contabilizados, estes minutos perfazem um número superior a 60 e quantos mais minutos tenho ao fim do dia mais quero ter, uma vez que a mudez, como a solidão, são para mim condições inseparáveis do estar vivo, do respirar. Daí a necessidade de estar debaixo de água, pois entre um vai e vem em apeneia, é possível não ouvir nada e com sorte, ver apenas ao longe o vulto de tanga, cúmplice, a vir na nossa direcção, sem ser necessariamente para vir ao nosso encontro.

Parece incoerente dizer que é “um mal” e depois afirmar, meia dúzia de linhas mais abaixo que este mal é um pré-requisito da vida, como o comer e o dormir. Porém, a soma dos números apontam para uma vitória da solidão que se agiganta mas não assusta.

O único problema é que a linha que separa esta solidão voluntária da involuntária é traçada com lápis 8B, que facilmente se espalha pelo papel com um passar de dedo seco e firme. E na vida fica aquela mancha cinzenta que não permite a aproximação de nada nem de ninguém – se isso implicar a abdicação de 60 minutos de uma espécie de morte para a vida -, nem a saída da mesma para fora, uma vez que… já não há linha. Não nego contudo aquilo que já afirmei aqui neste blog: gosto da vida. Principalmente daqueles 60 minutos em que nem sequer estou comigo. Ainda que me mostrem outros 60 minutos melhores, esses terão de ser sempre comigo e eu não sou boa companhia para mim própria.

3 Comments:

Blogger [A] said...

( )*

4/4/06 11:16 da tarde  
Blogger [A] said...

andava aqui a tentar uma forma de mostrar o quanto comungo dessas palavras, mas sem provocar qualquer ruído....só saiu aquilo.

4/4/06 11:18 da tarde  
Blogger Ji|||i said...

Talvez te tenha telefonado dentro dos 60 minutos em que estavas contigo...

5/4/06 11:29 da manhã  

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