sexta-feira, janeiro 27, 2006

O CARTEIRO

“O que se leva desta vida, é o que se come e o que se bebe”

Sabe, quem conhece o Belogue, que não podíamos discordar mais desta frase, mas o fatalismo d’ O CORREIO não deixa margem para dúvidas (outra expressão que toda gente utiliza, é muito elucidativa, mas, tal como o clip, ninguém sabe quem inventou). Querem que comece por onde? Ora bem, existe de facto uma ligação entre a comida e a morte. Tentamos vê-la aqui, não nos termos em que o senso comum a coloca, mas estabelecendo as devidas relações.

Willem Kalf
Still-life with a Nautilus Cup
1662
Thyssen-Bornemisza Collection, Madrid

a) A Última Ceia é o exemplo disso por excelência, mas não a primeira, segundo o paganismo. Neste campo temos Tântalo, temos Zeus que comia os próprios filhos para que nenhum sobrevivesse e lhe fosse superior, temos o fígado do Prometeu. (Por falar nisso, na mitologia irlandesa há uma passagem semelhante entre dois guerreiros. Quando um apunhala o outro, o apunhalado – tal como na ópera em que se demora no mínimo dois minutos a morrer efectivamente – pede para beber água de um riacho. Ata-se em seguida a uma pedra para morrer de pé (isto tudo depois de ter sido atingido uma vez, hã) e uma ave poisa no seu ombro. Aí é desferido o golpe final.
[Mas onde é que anda a Câmara de Lisboa que não dá a pílula à passarada?]

b) Em “Orlando” de Virgínia Woolf, o homem torna-se mulher após um magnífico jantar que originou uma espécie de morte e ressurreição. Na Costa dos Murmúrios de Lídia Jorge, o que se bebe é a morte – não se leva a bebida desta vida, mas é a bebida que leva a vida. Em Dona Flor e seus dois maridos de Jorge Amado existe uma relação entre a comida e o defunto – Dona Flor reencontra o seu marido morto e aquele que lhe dava a emoção, ao contrário do outro que apenas lhe proporcionava segurança, após a festa do primeiro ano de casamento com o farmacêutico Teodoro. E em Proust (desculpem lá, mas tinha de ser), cada repasto, cada jantar no Hotel em Balbec, na casa dos pais em Paris, a debicar frutas nas Tulheries com Albertine, o banquete em casa dos Verdurin, antecedem momentos de tensão: a descoberta de um rosto que muda o rumo da história, o beijo de despedida da mãe que molda o carácter fleumático do narrador, a desconfiança de que Albertine se dava a mulheres, a zanga entre Morel e Charlus em frente a todos os convivas e que altera a linha hierárquica.


Man Ray
Proust on deathbed
1922
Paul Getty Museum, Los Angeles


c) Lembrei-me de um verso, talvez o mais genial, para mim que não percebo de música, de uma senhora de quem já falei. Embora não concorde com o estilo “Mulher abandonada que é mais e que vai vencer e ser feliz embora nunca te vá esquecer nem perdoar desculpa lá mas é mesmo assim e descansa que não vais encontrar melhor, ah não vais não”, há um verso na música “Com açúcar, com afecto” de Maria Bethânia (não é dela, é do Chico Buarque, mas ela canta-a). Se não na morte física, na morte de uma relação:
"Com açucar, com afecto
fiz seu doce predilecto
pra você parar em casa
qual o quê
com seu terno mais bonito
você sai e não acredito
quando diz que não se atrasa"(...)
[tirem a faca do punho dessa senhora, por favor!!!]

d) E por fim, nas peças de teatro cuja frequência tenho de dosear por risco de overdose cultural e taquicardia amorosa, lembro “Sangue em pescoço de gato” (título que ainda estou a dissecar porque os gatos não são fáceis de apanhar e ninguém quer matá-los.) Todas as personagens morrem a beber, numa festa onde os seus clichés, repetidos fora do contexto criam o caos e, a morte.